Angola celebrou recentemente os 50 anos da sua independĂȘncia. O Presidente JoĂŁo Lourenço liderou as cerimĂłnias oficiais, promovendo condecoraçÔes a veteranos do exĂ©rcito e homenageando figuras histĂłricas ligadas ao MPLA, como AntĂłnio Agostinho Neto e JosĂ© Eduardo dos Santos. Mas, no silĂȘncio dessas comemoraçÔes, ecoou uma omissĂŁo ruidosa: a ausĂȘncia de qualquer referĂȘncia aos co-signatĂĄrios do Acordo de Alvor, Holden Roberto (FNLA) e Jonas Savimbi (UNITA).
Este apagamento simbólico abre espaço para uma pergunta fundamental:
estamos a celebrar a independĂȘncia de Angola como fruto de um compromisso
nacional plural ou como resultado de uma imposição partidåria?
O Acordo de Alvor: um pacto a trĂȘs vozes
Assinado em 15 de janeiro de 1975, na vila portuguesa de Alvor, o Acordo
que leva o seu nome reuniu o Governo de Portugal e os trĂȘs principais
movimentos de libertação: MPLA, UNITA e FNLA. Reconhecia-se, nesse momento, que
Angola seria governada por um Executivo de transição multipartidårio e que a
independĂȘncia, marcada para 11 de novembro de 1975, deveria resultar de um
processo inclusivo e negociado.
O Acordo foi, Ă Ă©poca, uma tentativa legĂtima de evitar uma guerra civil apĂłs o fim do colonialismo. Era, mais do que um compromisso jurĂdico, uma promessa polĂtica de que Angola nasceria com vĂĄrias vozes e lideranças.
O colapso e a proclamação unilateral
Menos de trĂȘs meses apĂłs a assinatura, o Acordo de Alvor colapsou. As
rivalidades entre os movimentos rapidamente escalaram em confrontos armados.
Cada força polĂtica começou a ocupar partes do territĂłrio nacional, muitas
vezes com apoio estrangeiro: o MPLA com apoio cubano e soviético; a FNLA e a
UNITA com suporte dos EUA e da Ăfrica do Sul.
No dia 11 de novembro de 1975, o MPLA proclamou unilateralmente a independĂȘncia de Angola em Luanda, sob a liderança de Agostinho Neto. O governo portuguĂȘs, diante do caos, reconheceu apenas esse governo, legitimando de facto a tomada de poder pelo MPLA. A UNITA e a FNLA tambĂ©m fizeram proclamaçÔes prĂłprias, mas foram rapidamente marginalizadas, tanto polĂtica quanto militarmente.
A independĂȘncia capturada
O que se seguiu foi uma guerra civil de quase 30 anos, onde a luta pelo
poder se sobrepĂŽs ao sonho de unidade nacional. A independĂȘncia que deveria ter
sido coletiva tornou-se uma conquista apropriada por um Ășnico partido. E essa
apropriação continua a moldar a narrativa oficial.
As comemoraçÔes dos 50 anos mostram isso com clareza. Ao celebrar apenas
lĂderes do MPLA e excluir figuras como Savimbi e Holden Roberto, o Estado
angolano reforça uma versão oficial da história onde apenas um lado é digno de
memĂłria e honra. Ă uma tentativa de fechar o ciclo da independĂȘncia sem reconciliar
as suas contradiçÔes fundadoras.
Este tipo de exclusĂŁo nĂŁo Ă© meramente simbĂłlica — ela carrega implicaçÔes
polĂticas profundas. Em vez de promover uma reconciliação nacional, o governo
atual reafirma a hegemonia histĂłrica do MPLA, ignorando que a independĂȘncia de
Angola, conforme foi acordada em Alvor, tinha mais do que uma assinatura. Era
um pacto entre diferentes visÔes, diferentes lideranças, diferentes projetos de
nação.
Passados 50 anos, nĂŁo seria este o momento ideal para corrigir esse curso?
Para reconhecer, ainda que tardiamente, a contribuição de todos os movimentos
que lutaram contra o colonialismo, mesmo com os seus erros e excessos? Para dar
lugar Ă memĂłria das vĂtimas e das vozes silenciadas, e nĂŁo apenas Ă narrativa
oficial?
Celebrar a independĂȘncia de Angola Ă© um dever patriĂłtico. Mas celebrar sem
verdade histĂłrica Ă© repetir os erros que prolongaram o sofrimento do paĂs
durante décadas. O Acordo de Alvor pode ter fracassado na pråtica, mas
permanece como sĂmbolo de uma Angola possĂvel — aquela que nasceu com
pluralidade, compromisso e esperança.
Os 50 anos não devem servir para apagar contradiçÔes, mas para
enfrentå-las. O caminho da reconciliação passa por reconhecer todas as vozes da
independĂȘncia, mesmo aquelas que nĂŁo triunfaram militarmente. Porque uma nação
nĂŁo se constrĂłi apenas com vencedores — constrĂłi-se com memĂłria, justiça e
coragem para ouvir os que foram esquecidos.
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