Fui recentemente distinguido com uma medalha no âmbito das celebrações do 50.º aniversário da independência de Angola. O gesto, inesperado, tocou-me profundamente—não porque o tivesse procurado, nem tão-pouco por ver nele qualquer forma de validação absoluta, mas porque simboliza algo raro no contexto angolano: o reconhecimento de um percurso feito fora das esferas do poder, nas margens da institucionalidade, com independência intelectual e compromisso cívico.
Compreendo e respeito os que me criticam por ter aceite essa distinção. Leio as suas inquietações com atenção. Sim, há razões para protestar: o país atravessa dificuldades estruturais sérias, muitos angolanos vivem em condições de indignidade, e os mecanismos de redistribuição de oportunidades continuam viciados. Mas recusar a medalha, nestas circunstâncias, seria alinhar-me com uma forma de protesto decidida por outros, sem que me tivessem escutado ou sequer considerado. Seria como aderir a uma convocatória que nunca recebi—e, mais do que isso, promovida por pessoas que, durante anos, ignoraram o que escrevi, o que defendi, e o trabalho que levei a cabo, por vezes em profundo isolamento.
Nunca desempenhei qualquer cargo político na UNITA ou em qualquer outro
partido. Tive, como muitos, momentos de expectativa—nas vésperas das eleições
de 2022, por exemplo, considerei brevemente a hipótese de me envolver
politicamente. Amigos que tinham sido sondados para integrar listas partidárias
chegaram a dizer-me, com ironia: “Diz tu que queres ir, porque nós não estamos
interessados.” O convite nunca surgiu, e compreendi perfeitamente porquê. Tenho
consciência de que o meu perfil—pouco acomodado, avesso ao dogmatismo, com uma
trajetória marcada pela liberdade crítica—causa desconforto a alguns. Aceito
isso. Mas nunca deixei de escrever, de intervir, de observar e de tentar
contribuir com ideias para a construção de um país mais justo, plural e
informado.
Sou colaborador regular do Jornal de Angola, onde assino uma crónica semanal. Deveria recusar esse espaço por se tratar de um jornal detido pelo Estado? E se, num futuro, me fosse oferecida uma função pública, deveria decliná-la por não ter filiação no partido governante? Estaremos a impor aos independentes uma espécie de auto-exílio institucional? A penalizá-los por não pertencerem a qualquer quadrante ideológico dominante?
Essa lógica contradiz o princípio pelo qual tantos têm lutado: o de que o
mérito e a competência devem prevalecer sobre as lealdades partidárias. Em
democracias mais consolidadas, existem comissões de função pública que
reconhecem carreiras e promovem indivíduos com base no desempenho, e não na
pertença política. Se Angola está a começar, ainda que timidamente, a trilhar
esse caminho, deveríamos acolher esse sinal com responsabilidade e esperança
crítica.
Sou, por isso, grato ao Presidente João Lourenço por ter olhado para além da lógica partidária ao conceder esta medalha. Um gesto de reconciliação nacional não se faz apenas com discursos: implica reconhecer simbolicamente que o país é feito por todos. A inclusão de figuras como Jardo Muekalia—ex-representante da UNITA em Washington e hoje respeitado académico e ensaísta—é um bom exemplo desse esforço. É sinal de que a pluralidade pode, gradualmente, tornar-se norma, e não exceção.
Aliás, o próprio facto de esta condecoração ter gerado debate público é, em si,
um dado encorajador. Demonstra que estamos a evoluir para uma cultura política
mais exigente, em que os actos simbólicos do Estado são escrutinados,
problematizados e contextualizados. Esse espírito crítico é necessário e
saudável. Representa uma sociedade mais desperta, mais plural e menos inclinada
ao conformismo reverencial. Mas é também importante que esse espírito crítico
não resvale para a exclusão automática de quem não se enquadra nas lógicas
tradicionais de protesto.
A medalha que recebi não é um prémio por silêncio nem por alinhamento. É,
na melhor das hipóteses, o reconhecimento de um percurso feito com
autenticidade—com falhas, com desvios, com hesitações, mas sempre com
integridade. Não apaga os problemas do país. Não me transforma num emblema de
nenhum regime. É, simplesmente, um gesto simbólico num país que, durante
décadas, confundiu reconhecimento com lealdade. Hoje, talvez estejamos a
aprender que é possível distinguir uma coisa da outra.
Aceitei a medalha com a humildade de quem nunca a esperou, e com a lucidez
de quem sabe quem é. E recuso a ideia de que o gesto, por si só, compromete uma
vida inteira de liberdade intelectual e fidelidade a princípios. Não é um ponto
final. É apenas uma vírgula, num texto ainda em construção.
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