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Os angolanos são todos bobos da corte? – Joaquim Nafoia

É imperioso banir o culto de personalidade imposto pelo ditador. A começar pela prática, tão patética quanto dispendiosa, de se espalhar, em cada esquina habitada desta extensa Angola, o retrato fotográfico do Presidente da República, a fim de ser «venerado».

A razão do estorvo do processo democrático de direito e do atraso do desenvolvimento económico e social de Angola está bem identificada: reside no modelo irracional formatado pelo MPLA a partir de 1975! É impossível que o país atinja patamares mais elevados de desenvolvimento sem que as instituições estejam no rumo certo da normalidade institucional, tal como aconteceu com as sociedades que fizeram a transição de um sistema fechado para o multipartidarismo de facto e economia de mercado.

Mas temos de admitir que qualquer tentativa de normalização democrática e derrube do estado autocrático estará fadada a fracassar – pelo menos nos marcos e valores do republicanismo – se entretanto não for encetado um combate a certo fenómeno pernicioso que também fustiga o país: o culto de personalidade ao ditador!

Tem sido bastante repugnante e horroroso quando nos deparamos com centenas de milhares de pôsteres e fotografias de um só homem que circunstancialmente ocupa o cargo de Presidente da República de Angola. Qual é a necessidade de se espalhar em cada esquina habitada desta extensa Angola o retrato fotográfico do Presidente da República – no caso da vez, de João Manuel Gonçalves Lourenço?

Qual é a necessidade de se estampar em cada direcção, departamento, repartição, secção, escolas e institutos públicos, hospitais, centros e postos médicos, sobados, unidades militares e policiais, enfim, posters e retratos fotográficos do Presidente da República?

Mais: como é que se pode entender que os gabinetes de trabalho dos Deputados na Assembleia Nacional – um órgão de soberania do poder legislativo que é, por excelência, distinto dos demais poderes –, sejam invadidos e inundados com retratos fotográficos do Presidente de um órgão diferente em linha horizontal? Há na Assembleia Nacional acima de 200 deputados, correspondendo a cada um deles um gabinete de trabalho, sem falar dos gabinetes de outros funcionários de direcção e administração da própria Assembleia.

Análise análoga deve ser feita relativamente ao poder judicial, no qual esse absurdo é replicado. E o absurdo torna-se ainda maior se tivermos em conta que as fotografias de João Lourenço multiplicam-se como cogumelos pelos departamentos ministeriais, governos provinciais, administrações municipais e comunais, etc., etc.

É uma loucura esquizofrénica que tem implicado um enorme dispêndio financeiro para os cofres públicos. Não se pense que fica barato. São uns bons milhões de dólares gastos a fazer fotos e pôsteres e tratar das suas molduras.

Pense-se nos custos que decorreram da substituição, após as eleições de 2017, do antigo Presidente da República José Eduardo dos Santos pelo novo, João Lourenço. Tal decorre do facto de a imagem do Presidente da República ser venerada e tratada como símbolo nacional. Qualquer estado tem símbolos que representam ou identificam a nação. Mas, em geral, os símbolos nacionais não passam da bandeira, armas e brasões, o hino e pouco mais, que representam os países em cerimônias, eventos, documentos importantes e missões oficiais. Fora disso, é esquizofrenia.

Mas, no caso angolano, a prática é mais do que esquizofrenia. Constitui mesmo uma arbitrariedade típica das ditaduras. Um fenómeno que «ressuscita» a personalidade de Luís XIV que, no auge das suas luxúrias e devaneios autocráticos, aventava responder apenas perante Deus e não os homens por entender que o Estado era ele. Portanto, o MPLA faz a mesmíssima coisa que fazia o rei absolutista da França do século dezassete.

Na verdade, devemos «entender» o que se passa como um fenómeno típico de regimes onde a liberdade de expressão colapsou. Nas autocracias, a liberdade de expressão é sempre a primeira vítima. Numa ditadura a política começa na personalidade do chefe – o ditador! Os meios do Estado são usados para a promoção do ditador e o Partido que o suporta.

Sobre o Estado Democrático de Direito, a Constituição da República de Angola consagra no número 1 do artigo 2º o seguinte:

A República de Angola é um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa.

Tão cristalino que é, o artigo 2º da nossa Constituição leva-nos à constatação factual do estado autocrático que o regime do MPLA impõe aos angolanos, começando por se reflectir nas instituições do Estado, antes de chegar aos cidadãos em geral.

Frutos da tirania

Com o poder autocrático de que se revestiu sem qualquer legitimidade, o MPLA corrói os pilares do Estado Democrático de Direito consagrados na Constituição através de actos como a subalternização e enfraquecimento dos poderes legislativos e judiciais, a instrumentalização dos serviços de Inteligência no seu conjunto, as forças armadas angolanas, a polícia nacional, os funcionários públicos, o uso abusivo das finanças públicas – estas últimas transformadas e reduzidas a simples tesouraria do Partido –, entre outros aspectos que degradam a nossa incipiente democracia.

Na ditadura imposta pelo regime do MPLA, os funcionários públicos se constituem no elo mais fraco e sacrificado. Joga-se com o estômago destes concidadãos, que se sujeitam para garantir o salário e assegurar o pão à mesa das famílias. Pagam ao preço dos olhos a sua dignidade, sujeitando-se aos mais variados tipos de chantagens.

Não é por acaso que o Presidente do Partido MPLA é, cumulativamente, o Presidente da República; o Primeiro Secretário Provincial é o Governador; o Primeiro Secretário Municipal é o Administrador; o Primeiro Secretário Comunal é o administrador; o Comandante Provincial da Polícia Nacional é o delegado Provincial do Ministério do Interior que nessa condição é militante e membro do comité Provincial do MPLA na Província sob sua jurisdição.

Em cadeia, estão todos os serviços de inteligência, comandos municipais e comunais da Polícia Nacional, directores, chefes dos departamentos, de secções e funcionários do topo à base, ou seja, todos são obrigados a possuir o cartão de militante do Partido/Estado, uma prática que não poupa as autoridades tradicionais, os antigos combatentes e veteranos da pátria, estes últimos subjugados por causa dos subsídios raquíticos que recebem.

Salvo excepções muito especiais, todos estão expressamente proibidos de faltar a qualquer actividade do partido MPLA, desde reuniões, marchas de exaltação do líder, comícios, maratonas e recepção de agentes dos comités de acção partidária. E o mais patético nisto tudo é que, frequentemente, há ameaças de reprovações de classe às crianças e jovens estudantes. Eles não são poupados, pois são coagidos a participar sob pena de sanções várias. O mesmo se aplica às forças de defesa e segurança.

Portanto, toda esta arbitrariedade decorre da ditadura imposta ao país pelo partido-estado MPLA. A ditadura é, pois, um fenómeno repugnante que depende, quase sempre, de dois instrumentos de poder: o culto de personalidade e o terror.

O objectivo do culto de personalidade não é de convencer ou persuadir, mas lançar a confusão, destruir o bom senso, impor a obediência, isolar os indivíduos e destruir-lhes a dignidade. As pessoas autocensuram-se e, consequentemente, vigiam-se umas às outras, denunciando as que não se mostram suficientemente sinceras nas suas manifestações de dedicação ao líder. Os trabalhadores são obrigados a criar a ilusão e o espírito de consentimento, mesmo a contragosto.

Riem forçadamente, papagueando os princípios do partido.

O historiador e pensador neerlandês Frank Dikotter, no seu livro «Como tornar-se um ditador», diz que o poder conquistado através da violência tem de ser mantido através da violência, embora a violência não se revele necessariamente um instrumento eficaz. Um ditador tem de contar com forças militares, polícia secreta, guarda pretoriana, espiões, informadores, interrogadores e torturadores. Um ditador tem de incutir o medo no povo, para conseguir que este o aclame, pois só assim provavelmente sobreviverá mais tempo. O paradoxo do ditador moderno, em suma, é que ele tem de criar a ilusão de apoio popular.

É caso, portanto, para dizer: em Angola precisa-se, com urgência, da conjugação e unidade dos povos de maneira a impedir que a ditadura prevaleça

Em suma, para a democratização do País, deve ser combatido, em primeiro lugar, o culto de personalidade que o ditador nos impôs.

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