Recebi esta mensagem de um amigo, via WhatsApp, como a académicos, a conversa era a propósito das tensões entre Israel e o Irão. Mensagem simples, directa, quase "ingénua". Mas, olhada sob outro ângulo, é profundamente perturbadora. Fiquei em silêncio. Não porque não tivesse resposta, mas porque a frase conduziu-me a um abismo. Um abismo de memórias, de sonhos e de frustrações. Um abismo africano.
De imediato, fui invadido por uma tempestade de pensamentos. O que
significaria, nos dias de hoje, que África, este continente sistematicamente
marginalizado, pudesse intervir como mediador entre potências armadas,
inseridas num jogo geopolítico dominado por interesses estratégicos globais?
Pensei em Cheikh Anta Diop, em Amílcar Cabral, em Marimba Ani, em Asante,
em Amos Wilson, em Frantz Fanon, em Sankara e Nkrumah. Lembrei-me do sonho
pan-africanista, da ideia de uma África unida, com voz própria, capaz de agir como
força moral e política num mundo desequilibrado. Uma África com legitimidade
histórica, espiritual e cultural para falar de reconciliação, justiça e paz.
Mas a verdade é que a realidade actual impõe-nos outro espelho. Conforme as
palavras do Professor P.L.O. Lumumba, “estamos fragmentados, enfraquecidos
institucionalmente, muitas vezes governados por interesses externos ou elites
sem visão colectiva.” Somos frequentemente espectadores da História e não os
seus autores. Ficamos à margem, mesmo quando a História nos pertence desde o
início.
Israel e Irão jogam no tabuleiro das potências. Têm armamento, estratégias,
influência diplomática e capacidade de negociação global. A África, por sua
vez, somando e multiplicando pelo número de países existentes nele, tem
memória, tem humanidade, tem ancestralidade. Mas não tem, aparentemente, o
lugar reconhecido para actuar como mediadora. E aqui reside o verdadeiro
paradoxo: temos um reservatório de saberes ancestrais, de tradições de mediação
comunitária, de filosofias como o ubuntu, que inspiram formas de convivência e
resolução de conflitos mais humanas e sustentáveis. Mas perdemos o prestígio e
a força para as propor como modelo. Os nossos analistas políticos e peritos em
Relações Internacionais definham no esforço de tentar dizer o que se passa de
concreto. Qual é o caminho afinal e como está a nossa bússola?
É neste ponto que se impõe a Psicologia Afrocentrada como paradigma
científico. Um campo que, de forma coerente, venho defendendo ao longo do meu
percurso desde que me conheço como psicólogo. Fiz saber nas Jornadas
Científicas e nas conferências internacionais que a Psicologia Afrocentrada
propõe uma reorientação epistemológica: em vez de adaptar o africano aos
modelos europeus, propõe entender o africano a partir das suas raízes, da sua
cosmologia, da sua estrutura familiar, da sua relação com o sagrado e com a
comunidade.
Mas - como comentei em tempo com o meu compadre também psicólogo - há um
problema mais profundo: muitos africanos não gostam de ser lembrados de quem
são. Preferem que lhes tragam um produto para clarear a pele do que alguém que
lhes fale do valor da melanina. Preferem o silêncio confortável do esquecimento
ao chamamento inquietante da memória. E isso, mais do que entristecer-me,
tem-me cansado. Um cansaço que não é físico... é existencial. Estudiosos da
Afrocentricidade sabem que esta é, mais do que uma corrente teórica: é um acto
de resistência, de cura e de re-humanização. É um modo de devolver ao sujeito
africano a centralidade do seu próprio universo simbólico. E sem isso, como
poderemos jamais pensar em mediação internacional, se ainda nem sequer fizemos
a mediação interna entre aquilo que somos e aquilo que nos fizeram crer que
somos?
Mas para a Áfrika Ancestral poder ser ouvida, ela precisa de tirar da
cartola o antídoto: um remédio simbólico que, ao mesmo tempo que cure a
desmemória, revele que o africano tem fugido de si próprio para se sentir mais
civilizado, mais avançado, mais "gente". Quando, na verdade, ele
deveria estar na vanguarda desse avanço. Se a ancestralidade não conseguir
produzir esse antídoto, o africano continuará a seguir desmemoranado…
Wabeladyo, a palavra é tua!
Talvez o maior conflito a mediar não esteja no Médio Oriente, mas dentro de
nós: entre a África ancestral, berço da humanidade e do pensamento profundo, e
a África contemporânea, desmemoriada, submissa e, por vezes, cúmplice da sua
própria exclusão.
Depois de tirar a ramela das vistas, percebi que a frase do meu amigo foi,
afinal, um espelho. Um espelho que não nos lisonjeia - um espelho que nos
desafia. Não se trata de saber se a União Africana está preparada para intervir
em conflitos globais. Trata-se, antes, de saber se nós, africanos, estamos
dispostos a reocupar o centro do nosso próprio destino.
A mediação que precisamos já não é apenas diplomática - é ontológica. É a
mediação entre o esquecimento e a memória, entre a alienação e a dignidade,
entre o pós-colonialismo institucional e a liberdade interior.
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