Prestar contas, porque o dinheiro que as entidades públicas gerem não é do Governo, não é do Parlamento, também não é do Partido que governa. O dinheiro é do soberano Povo de Angola.
De acordo com a nota que chegou a nossa mesa de redação que diz o Governo tem de prestar contas, porque o dono do dinheiro, é o Povo angolano, por intermédio dos seus representantes, precisa de saber se o dinheiro está a ser aplicado de acordo com a autorização dada pela Assembleia Nacional para realizar as funções e as tarefas essenciais do Estado, satisfazer as necessidades das pessoas e mais: o Povo precisa de aferir se aqueles a quem emprestou o poder de administrar os bens públicos, em nome de todos, estão comprometidos com o bem-estar geral ou se aproveitam da sua condição para beneficio próprio.
Ainda a nota, acrescentou prestação de contas deve ser, nos termos da
Lei, regular e periódica, transparente, verdadeira, credível e, mais
importante, o seu exercício formal deve ser relevante na vida das pessoas, das
famílias, das empresas e útil para os exercícios futuros do Estado.
A Lei estabelece que o Presidente da República remete à
Assembleia Nacional a Conta Geral do Estado até 30 de Setembro do ano seguinte.
A Assembleia Nacional recebeu a Conta Geral do Estado de 2022
em Outubro de 2023.
A Assembleia Nacional aprecia a Conta Geral do Estado até 30
de Junho do ano seguinte ao da sua recepção. Recebido o Relatório Parecer
Conjunto, a Presidente da Assembleia Nacional agenda, no prazo de 30 dias, a
apreciação da Conta Geral do Estado.
Apreciar a Conta Geral do Estado de 2022 em Agosto de 2024,
fora dos prazos legais, não tem impacto no quadro da responsabilização na
gestão financeira das entidades públicas.
O presente exercício político só será útil e relevante se
assegurar a legalidade e a regularidade da gestão de recursos públicos;
contribuir para uma melhor gestão dos recursos públicos; promover a
transparência e a responsabilização de quem gere os recursos públicos, mas que
não respeita os princípios gerais que regem a actividade financeira à saber:
princípio da justiça financeira, princípio da primazia do interesse público,
princípio da indisponibilidade das relações e dos poderes financeiros,
princípio da legalidade financeira e o princípio da responsabilidade.
O princípio constitucional da responsabilidade de titulares
de cargos públicos e o dever de prestar contas pelos resultados das decisões,
acções ou omissões não têm sido observados pelos poderes públicos.
Na perspetiva da responsabilização na gestão financeira das
entidades públicas, a responsabilidade pode ser política, criminal, civil,
disciplinar e financeira.
A natureza política da responsabilidade envolve sanções como
a destituição, que deve ser efectivada por órgãos de natureza política, neste
caso Assembleia Nacional, a exoneração e a censura pública.
O controlo financeiro pode ser administrativo, político,
exercido pelo Parlamento, jurisdicional, exercido pelo Tribunal de Contas e
social, exercido pela sociedade.
A eficiência e a eficácia exigem adequado sistema de controlo
dos recursos financeiros públicos e é feito em três momentos: prévio,
concomitante e sucessivo e, neste caso, enquadramos a presente apreciação da
Conta Geral do Estado de 2022 pela Assembleia Nacional.
Gostariamos de aproveitar o agendamento da apreciação da Conta
Geral do Estado relativa ao exercício de 2022 para propor à reflexão deste
fórum a seguinte tese:
As contas públicas de um Estado, onde os governantes são mais
ricos que os empresários pelo facto de o exercício de funções governativas ser
rentável e gerar mais riqueza pessoal do que o exercício de actividades
industriais ou comerciais, não podem estar certas. E, se parecerem corretas,
então, estas contas não são verdadeiras.
Sustentamos que esta tese é verdadeira por três razões:
(1) Primeira razão, o País funciona com duas constituições:
no plano formal, Angola funciona com a Constituição de 2010, que consagra a
República de Angola como um Estado Democrático e de Direito. No plano prático,
Angola funciona com uma outra Constituição, não escrita, que consagra a
República de Angola como um Estado autocrático, dirigido por um Partido-Estado.
Os dois ordenamentos complementam-se e legitimam-se. Por meio deles
estruturam-se transacções comerciais opacas que visam o enriquecimento pessoal
dos governantes, seja por via da inclusão de projectos, serviços ou contratos
no OGE, seja por via do acesso a empréstimos ou a garantias do Estado à margem
dos procedimentos de compliance, sabendo-se à partida que não irão pagar, seja
por via do acesso privilegiado e sem competição a oportunidades de
enriquecimento nos vários sectores da economia.
Estas transacções comerciais feitas às escondidas para
benefício próprio, são branqueadas quando o OGE é aprovado pela Assembleia
Nacional e executado à margem dos mecanismos de controlo, especialmente por via
de adjudicações diretas. Nesse ambiente, a Contabilidade que produz a Conta
Geral do Estado, deixa de ser utilizada como ciência que estuda e pratica as
funções de orientação, de controlo e de registo relativas à administração
económica, para praticar apenas as funções de orientação e registo. As normas
inerentes ao controlo, são dolosamente desrespeitadas e os procedimentos
ignorados.
(2) Segunda razão, a tese é verdadeira, porque a
Contabilidade Pública não está estruturada para detectar fraudes e desvios. Por
um lado, permite que o pagamento seja executado mesmo que o processo de
aprovação da despesa não tenha passado pelo escrutínio dos mecanismos de
controlo estabelecidos. Por outro lado, os controlos estabelecidos não são
testados nem são suficientemente robustos para acautelar, detectar e prevenir a
MIXA.
A sobrefaturação implícita nas adjudicações directas não é
detectada nem quantificada, nem
registada. As fugas de capital associadas aos negócios consigo mesmo não são
detectadas nem registadas. O expediente relativo às obras feitas uma vez, mas
pagas duas ou três vezes, não é detectado nem registado. O valor real dos
desvios ao erário não é refletido na Contabilidade Pública como tal. E os
envolvidos, mesmo depois de identificados, não são responsabilizados. Até
sentem-se à vontade para procurar desempenhar cargos mais elevados.
É do conhecimento geral que os preços que Angola paga pela
compra de bens e serviços são astronomicamente elevados. São imorais, sem
comparação com os preços de bens e serviços similares oferecidos pelo mercado
em qualquer parte do mundo.
Não é segredo para ninguém que parte do valor pago é
repassado para o benefício último dos titulares de cargos públicos. Os próprios
fornecedores e investidores, vítimas do sistema que o Estado autocrático criou,
chamam a esta prática “custos do contexto”.
Há muitos governantes a ganhar milhões com este ambiente
fraudulento de negócios que utiliza os investidores estrangeiros, não para
arriscar capital, mas para dar cobertura a roubos estruturados para o benefício
final de quem governa. Cinquenta anos depois da proclamação da Independência,
os angolanos que se ocupam da função não lucrativa de governar temporariamente
Angola constituem a classe mais rica do País, acima dos industriais e
comerciantes que desenvolvem actividades lucrativas.
Este paradoxo revela por si só que a Conta Geral do Estado de
2022 não pode refletir de forma alguma a fotografia real e completa da
situação financeira e patrimonial do País.
(3) Terceira razão, a tese é verdadeira, porque a conduta dos
órgãos de decisão transformou também o processo de apreciação e votação da
Conta Geral do Estado num exercício de cosmética, um ritual formalístico, sem
consequências reais para aqueles que prestam contas. Quem vai responsabilizar
quem?
i. Afirma-se que a Conta Geral do Estado foi elaborada com
base nos princípios da transparência e da boa governação. Onde estão a
transparência e a boa governação quando o decisor principal da alocação de
recursos viola ostensivamente as regras e procedimentos de controlo,
desrespeita os limites orçamentais impostos por Lei e não presta contas? Que
boa governação é essa?
ii. Afirma-se que a informação contida na Conta Geral Geral
do Estado foi sustentada pelos dados constantes no SIGFE, nos relatórios de prestação
de contas dos vários organismos do Estado e também nas recomendações da
Assembleia Nacional e do Tribunal de Contas, feitas em sede da aprovação do OGE
e da Conta do exercício fiscal passado. Pode ser verdade. Porém, trata-se
apenas de informação relativa à forma, depois de se assumir a obrigação de
pagar. As transações escondidas, que incluem as mixas, não são verificadas,
porque o sistema contabilístico não as detecta. E o problema não reside na
forma, o problema reside no conteúdo dos mecanismos de controlo interno a
observar antes de se assumir a obrigação. Estes mecanismos preventivos, que não
são observados, deixam a baliza aberta, no futebol político, para todo o tipo
de golos, até com a mão! Assim como nos processos judiciais a não observância
das normas do direito processual pode invalidar e anular a razão substantiva
dos factos, assim também, no planeamento e execução de obrigações contratuais,
a não observância das normas e procedimentos de controlo interno pode invalidar
ou anular a integridade de uma transação. A Contabilidade Pública não pode
registar factos inválidos, falsos, ilegais ou fraudulentos. E se o fizer, estas
contas não podem ser verdadeiras.
iii. Afirma-se que foram pagos em restos a pagar dos
exercícios anteriores o montante de 1,25 biliões de kwanzas e cancelados
valores na ordem de 214,35 mil milhões de kwanzas. Porém, esta informação não
está completa, não aborda o contexto. Quanto deste valor refere-se a negócios
consigo mesmo? Qual é o valor da mixa que lá está embutida? Ninguém sabe!
iv. Afirma-se também, por outro lado, que as empresas
Sonangol, Sodiam, Unitel, Prodel, Taag, Ende, RNT, representam, em termos
financeiros, 85% do activo, 81% do passivo e 91% do capital próprio de todo
universo do sector empresarial público. Muito bem. Mas qual é o estado
operacional desses activos? Estão todos registados em nome do Estado? O valor
patrimonial registado é verdadeiro? Os auditores externos examinaram a
contabilidade destas empresas e não ficaram convencidos. Por esta razão não
emitiram opiniões limpas. Emitiram relatórios com sérias reservas.
Nenhum negócio pode ser considerado seguro num ambiente
político governado por ordens superiores violadoras da Constituição e da Lei.
Nenhum País pode prosperar quando os seus governantes, que não produzem
riqueza, ficam com a riqueza da Nação e espalham a pobreza pelo Povo. As provas
estão à vista de todos, como o afirma o ditado popular: “QUEM CABRITOS VENDE E
CABRAS NÃO TEM, DE ALGUM LADO LHE VÊM".
As contas públicas de um Estado onde os governantes são mais
ricos que os empresários não podem estar certas. E, se parecerem correctas no
plano formal, então, estas contas não são verdadeiras no plano material. Nenhum
auditor independente as vai certificar.
Só poderão ser certificadas quando as normas e os
procedimentos de controlo interno forem observados pelos gestores públicos em
todas as etapas do processo, incluindo o planeamento e a orçamentação, a
contratação e o pagamento da obrigação.
Dito isto, há duas verdades que devemos assinalar: a primeira
é que as contas de 2022 são estáticas e já não podem ser alteradas. As
melhorias que se registaram na forma de apresentação em relação ao ano de 2021
e outras recomendações que foram observadas não tiveram nem têm qualquer
impacto na transparência governativa nem na integridade das contas públicas
actuais, que continuam ameaçadas pelos riscos de fraude, peculato e corrupção.
Em termos de desempenho, a situação do País agravou-se: a
fome tornou-se uma pandemia que deve ser tratada com a mesma diligência e
sentido de emergência nacional como foi a pandemia da COVID-19.
Em termos de disciplina orçamental, a situação agravou-se
ainda mais: nunca o País teve tanta adjudicação directa de contratos sem
qualquer controlo! Nunca a gestão orçamental do País testemunhou a autorização
de tantos créditos adicionais para aumentar a despesa pública não orçamentada,
como agora! Nunca o País teve níveis insustentáveis de endividamento público
como agora! Nunca os investidores estiveram tão hesitantes e confusos como
agora! Nunca a fome afectou tantas famílias ao mesmo tempo como agora! Nunca os
angolanos estiveram tão desesperados e tão temerosos quanto ao futuro como
agora.
O Estado precisa de encontrar uma solução duradoura que
ataque as causas da fome e traga estabilidade e esperança. Estabilidade dos
preços, incluindo as taxas de juro, as taxas de câmbio, os salários e as
pensões. Esperança para as famílias angolanas em especial para os jovens. O
Governo sozinho não vai conseguir, mesmo que façam novas divisões
político-administrativas não se vai resolver a crise, porque temos um Estado
falhado, um governo fracassado e um modelo de governação esgotado. Os órgãos do
Estado devem fazer uma avaliação profunda da situação e encontrar, no Interesse
Nacional, uma solução consensual para esta crise de governação.
O modelo de governo das finanças públicas não está ajustado à
dimensão e à complexidade das transações nem ao contexto de debilidades
endógenas e ameaças exógenas que a contratação pública enfrenta. O modelo deve
ser revisto de forma a garantir a eficácia dos sistemas de controlo interno e
dos processos de gestão dos riscos de fraude, peculato e corrupção. A natureza
do Tribunal de Contas e a estrutura do Poder público não se coadunam com as
necessidades de um sistema sólido, independente e eficaz de controlo interno como
aquele que Angola precisa.
Angola precisa de medidas mais ousadas para sair da crise de
governação e gestão financeira em que se encontra.
Quais são os mecanismos mais adequados para acautelar os
conflitos de interesses, subjacentes nas compras, contratos e obras que se
inventam e repetem ano após ano, só para obter a mixa?
Vamos continuar a fazer inquéritos, inspecções e auditorias
depois do prejuízo, ou vamos antecipar as fraudes e desvios?
Vamos continuar a fazer autópsias depois da morte do
paciente, ou apostar nas medidas preventivas?
Vamos transformar a auditoria independente aos processos e
aos sistemas numa função permanente e actuante ao longo do exercício económico,
ou vamos mantê-la dependente e limitada ao final de cada exercício?
E, no que toca à responsabilização, vai o Estado punir os
gestores das unidades que na execução da despesa não respeitam os limites
fixados pelo Orçamento, ou vai continuar a atribuir-lhes sempre créditos
adicionais?
Vai o Estado parar definitivamente com os projectos
supérfluos, os elefantes brancos, a exibição ostensiva de luxo na miséria, como
aviões de luxo, deslocações e conferências internacionais desnecessárias, ou
vai continuar a aumentar a Dívida Pública já em si insustentável?
Vai o Estado angolano passar a demitir os Ministros,
embaixadores, governadores e administradores municipais que incorrem em
incumprimentos recorrentes das normas de prestação de contas, ou vai apenas
transferi-los para outras missões?
E, no que toca à prevenção e à transparência na gestão de
potenciais conflitos de interesses, vai o Estado passar a publicar o património
detalhado detido por detentores de cargos públicos, ou candidatos, sem
excepção, no País e no estrangeiro, directa e indiretamente, não apenas no acto
de tomada de posse, mas ao longo do mandato, ou vai continuar a prática de ter
tudo fechado num envelope que ninguém pode abrir?
Se quisermos mesmo implementar com êxito qualquer Estratégia
Nacional de Prevenção e Combate à Corrupção para corrigir o que está profundamente
mal, temos de adoptar COM URGÊNCIA NOVAS MEDIDAS. Não podemos perder mais
tempo!
Há uma última nota que gostaríamos de partilhar. A Conta
Geral do Estado de 2022 revela que, afinal, o Estado tem o seu património
tangível inventariado e controlado. O
Estado sabe em que municípios estão localizados os bens e quanto valem. Quer os
bens do domínio privado como os bens do domínio público. Parte destes bens
deverá ser transferida para as Autarquias Locais. Isto significa que, afinal,
não há necessidade de se fazerem novos inventários no quadro das “tarefas
prévias” propostas para a institucionalização efectiva das Autarquias Locais.
A melhor forma de comemorar os 50 anos da Independência
Nacional é devolver o Poder ao Povo, realizar as Autarquias Locais em todos os
municípios do País e em simultâneo!
Com 164 ou 326 municípios, Angola tem de concretizar a
institucionalização efectiva das Autarquias Locais em 2025!
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