A Constituição da República de Angola completa hoje 14 anos desde a sua promulgação, a 5 de Fevereiro de 2010. Por ocasião da data, o Jornal de Angola entrevistou a presidente do Tribunal Constitucional, Laurinda Cardoso, enquanto instituição guardiã do cumprimento da Carta Magna
Como avalia o grau de conhecimento da Constituição, quer da sociedade quer
das instituições?
Eventualmente, não sou a pessoa certa para avaliar o grau de conhecimento da Constituição, quer seja pela sociedade em geral ou pelas instituições. De qualquer modo, tendo em conta que faço parte da sociedade, é deficiente.
Por que razão diz isto?
Ainda conservamos a ideia de que a Constituição é um instrumento de
trabalho para os juízes, juristas e para os advogados. Às vezes, até, nas
instituições judiciais ainda se verifica essa fraca percepção.
A Constituição é, no fundo, a base de tudo. É na Constituição onde estão definidos os princípios orientadores da Administração do Estado, da sociedade e dos aspectos económicos, sociais, culturais e da cidadania. A avaliação que faço é que a nossa Constituição tem sido explorado nos circuitos académicos, mas precisa ser melhor conhecida e divulgada junto da sociedade de um modo geral.
O que falta para aumentar o nível de conhecimento da população e da
sociedade, de forma geral?
Numa primeira fase, temos que nos consciencializar sobre a importância da
Constituição e depois falar sobre ela. É por isso que o Tribunal
Constitucional, tem vindo a desenvolver projectos de promoção e reforço da
literacia constitucional.
Depois de nos consciencializarmos da sua importância, então teremos, em
sede dos vários sectores, que definir estratégias para disseminar o conhecimento
e, aí, a Educação tem um papel fundamental.
A sociedade também tem esta responsabilidade, uma vez que podemos passar
vários elementos sobre a importância da Constituição de várias formas. Por
exemplo, através do teatro, filmes, música, entre outros.
O que é que a sociedade ganha com o conhecimento da Constituição?
Aumenta, sem dúvida, os níveis de consciência cidadã, a maturidade e a forma como os cidadãos passam a encarar os seus direitos e deveres e reforçar o sentimento patriótico. Aliás, vimos agora com a onda da performance da nossa Selecção de futebol, que não se falava de outra coisa, senão de Angola. Estávamos todos unidos, independentemente dos credos, pelo patriotismo. Portanto, precisamos realçar tudo isso, não apenas agora com o grande momento do futebol mas, todos os dias, e cada um de nós tem de se sentir um verdadeiro patriota, respeitando a nossa Bandeira, os nossos símbolos, a insígnia e o Hino Nacional.
A vandalização de bens públicos tem a ver, também, com essa falta de patriotismo?
A vandalização dos bens públicos constitui uma prática, a todos os títulos
condenável. É também uma demonstração de que não temos consciência dos nossos
valores . Neste aspecto, sentimos a falta de uma estratégia para a disseminação
da importância da Constituição.
A Constituição da República é a Lei Suprema de um Estado. Que avaliação faz
sobre o seu cumprimento no país?
É relativo. É uma questão cuja resposta nos colocaria aqui o dia todo, para
avaliar situação por situação. A CRA é uma espécie de Bíblia. Por exemplo,
perante a Constituição e a Lei, os homens e as mulheres são todos iguais. A
pergunta que não se cala é: onde é que materializamos este princípio no nosso
dia-a-dia? Então, o desafio passa por verificar se as nossas políticas públicas
têm respeitado o princípio da igualdade, se fazemos ou não separação entre
homens e mulheres no acesso aos mesmos lugares, ou se há alguma política que
discrimina etc.
A família por exemplo, é o ponto fulcral da sociedade, mas como é que
estamos organizados em sede da família, como é que vemos a questão da protecção
do meio ambiente, dos símbolos nacionais ou do direito à vida que é o bem
supremo? Angola protege a vida e, por isso, não temos a pena de morte. O
cumprimento da Constituição tem que ser aferido em relação a cada uma destas
situações concretas e verificar se em algumas circunstâncias foram violadas ou
não.
Como procede o Tribunal Constitucional no caso de violação?
Nas matérias da sua competência, em presença de violações, as partes
interessadas põem as questões e o Tribunal Constitucional, por sua vez, aprecia
e analisa, para se pronunciar se há ou não inconstitucionalidade. Por isso, não
é tecnicamente correcto dizer: nós não cumprimos com a Constituição, e sim
houve uma avaliação do princípio tal ou da norma tal, de cariz constitucional,
que é aferido só em relação a esta ou aquela questão.
Quais têm sido os principais atropelos à nossa Constituição?
Só podemos aferir os atropelos , entenda-se violações da Lei ou ou
inconstitucionalidades, quando houver uma espécie de declaração de violação à
mesma. No entanto, temos recebido vários processos, e, por sinal, a maioria, em
sede das acções jurisdicionais, têm a ver com o que chamamos de Recursos
Extraordinários de Inconstitucionalidade(REI), que são submetidos à apreciação
do Tribunal Constitucional a partir de outros tribunais, e a grande maioria são
os habeas corpus, relacionados com a privacidade da liberdade das pessoas.
Está a falar dos casos de excesso de prisão preventiva?
Estamos a falar daquelas situações em que as pessoas são presas por alguma
razão e ficam muito tempo sem julgamento. Então, estas pessoas recorrem ao
Tribunal invocando violação dos seus direitos fundamentais e pedem que sejam
colocados em liberdade. Nestes casos, o tribunal analisa e aprecia, e, havendo
violação de facto, dá provimento aos pedidos.
De quantos processos estamos a falar?
No ano passado, por exemplo, o Tribunal Constitucional recebeu
aproximadamente 77 processos, destes 56 são recurso extradordinário de
inconstitucionalidade e 8 relacionados a habeas corpus.
O que é que deve ser lembrado, hoje, no aniversário da Constituição?
O que eu gostava de lembrar a todos os angolanos são, no fundo, os
resultados que advêm da materialização dos princípios constitucionais e que
retivéssemos o facto de a Constituição ser um instrumento importante para todos
nós, na concretização dos nossos direitos. Temos de ter a plena consciência que
a Constituição não é apenas um instrumento de juízes, magistrados, juristas e
académicos.
A Constituição é um instrumento do povo para o povo. É, no fundo, a nossa
bússola do ponto de vista da organização do Estado e da convivência social,
quer em sede dos aspectos culturais, económicos, sociais, das questões da
cidadania, quer em sede das questões de ordem jurídica ou do Estado. Todos nós
deveríamos ter um conhecimento genérico sobre o que é, em termos conceptuais, e
qual é a importância da Constituição, enquanto um instrumento de todos os
angolanos.
Não precisamos saber tudo sobre a Constituição, mas o essencial, os valores
e saber que temos um instrumento e que este define, em linhas gerais, a nossa
vida em sociedade. Já seria óptimo.
Qual é a importância da Constituição da República na organização
jurídico-partidária do país?
A CRA é a Bíblia e todos os partidos políticos devem, na sua actuação,
obediência aos princípios constitucionais. Todos, sem excepção, quer do ponto
de vista das pessoas, enquanto seres, quer enquanto organizações civis,
partidárias e empresariais. Não há uma acção ou uma actividade que possa ser
exercida, cujas regras estejam em desarmonia com a Constituição. A questão de
ser Lei suprema fundamental do Estado, quer dizer que é a "Mãe”.
É a Mãe que estabelece as regras. As nossas regras fundamentais enquanto
organização do Estado, o nosso pacto está direccionado com a Constituição da
República. Os partidos políticos, na sua actuação e relação com o Governo e com
outras instituições, também têm o dever de obediência à Constituição.
Como guardiã da Constituição, como reage às críticas normalmente feitas por
políticos sobre violações ou desvios à Lei Mãe?
Nós não reagimos. O Tribunal Constitucional não reage e não deve reagir,
porque não tem competências para o efeito. As competências do Tribunal
Constitucional estão plasmadas na Constituição e na Lei. De acordo com a
Constituição e a Lei, o TC emana resoluções e acórdãos. O Tribunal
Constitucional só fala por estas vias. Não pode vir a público para reagir, não
tem impulso processual e não pode tomar conhecimento de uma situação e assumir
uma posição. O TC aprecia, mas tem que haver um outro órgão que nos submeta ou
faz o pedido.
Quem tem competência de pedir a intervenção do Tribunal Constitucional?
O Presidente da República tem esta competência, a Assembleia Nacional, os
deputados, a Ordem dos Advogados. O TC não tem competências para impulsionar
processos, apenas para apreciar.
É um pouco a esta dinâmica de actuação do Constitucional. São considerações
que valem dentro dos preceitos que cada um defende e de um princípio
constitucional que é a liberdade de expressão. As pessoas podem falar, mas o
Tribunal não deve, do ponto de vista das competências, reagir neste formato.
Qual tem sido o papel da Constituição na consolidação do Estado Democrático
e de Direito?
A efectivação destes princípios democráticos e a consolidação do Estado De-
mocrático de Direito pressupõe uma série de acções, quer dos órgãos
jurisdicionais, quer dos judiciais, dos órgãos da Administração Pública e da
sociedade, de modo geral. Por exemplo, quando falamos da questão da liberdade
de expressão, sabemos que a mesma tem limites, então a Constituição diz quais
são esses limites.
Quando eu exerço o direito de me expressar livremente, estou a fazê-lo
porque somos um Estado Democrático e de Direito que prevê este exercício. Mas a
própria Constituição diz: você pode se manifestar livremente, mas não pode
ultrapassar certos limites.
Este processo está a seguir um curso normal, em termos de evolução?
A apreciação da consolidação ainda é ténue porque nós não vamos conseguir
consolidar as nossas obrigações, os nossos deveres se não os conhecermos.
Será que eu conheço quais são os meus direitos, se eu conheço, tenho de saber
quais são os meus deveres, porque os direitos e os deveres caminham sempre
juntos. Aliás, são as obrigações que depois limitam o exercício de alguns
direitos.
Os direitos não são ilimitados, há restrições e a Constituição nos diz em
que circunstâncias é que os direitos, essencialmente, os direitos fundamentais,
podem ser restringidos, e é, também, a Constituição que mostra a diferença
entre a restrição e a limitação.
Quer dizer que a avaliação do papel da Constituição na consolidação do
Estado Democrático e de Direito não é tarefa fácil?
A aferição de um verdadeiro Estado Democrático e de Direito tem que ser
feita na avaliação de uma série de pressupostos em que intervêm vários órgãos,
várias pessoas, incluindo a própria sociedade civil, no seu aspecto individual
e colectivo, observando a especificidade da situação em concreto.
Estamos a falar por exemplo da protecção social, da liberdade de expressão,
do direito e protecção do ambiente, direito à Habitação, Educação, Saúde, são
uma série de nuances que temos que esmiuçar e prever. E, esses aspectos, estão
todos plasmados na Constituição, como o direito à união de facto ou ao
casamento.
Onde estava na altura dos debates e do nascimento da Constituição que hoje
tem a tarefa de proteger?
A Constituição foi promulgada em Fevereiro de 2010. Nessa altura,
trabalhava no sector privado. Entrei exactamente na Administração Pública em
2010, mas em Setembro, ao abrigo desta Constituição. De lá para cá, passaram-se
14 anos. Em relação a isso, tenho plena consciência de que a Constituição é um
instrumento para se ir inteirando todos os dias, em função dos desafios que nos
são colocados.
Quando fala da Constituição, começa por onde?
Começo, no fundo, pela nossa estrutura como país, como cidadãos e angolanos
que somos. Trata-se do artigo 1.º, que define quem somos como país e como
angolanos, quem somos quer a nível interno, quer da visão que temos de nós,
Angola.
Qual é a importância deste artigo?
Este artigo, cuja epígrafe é a República de Angola, é o que fala sobre a
organização do Estado, diz que "Angola é uma República soberana e
Independente, baseada na dignidade da pessoa humana (direitos humanos, direito
à vida e a proibição da pena de morte)”.
Ou seja, a estrutura do Estado angolano é fundada na dignidade da pessoa
humana…
Sim. Este artigo afirma, desde logo, que a nossa estrutura é construída e
fundada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano. Neste
aspecto, temos a soberania do povo, quem manda é o povo e nós somos servidores
públicos, mandatados pelo povo para trabalhar para o povo. O povo é o soberano
e todos os poderes, Executivo, Legislativo e Judicial têm o seu mandato baseado
no povo.
Tudo que está plasmado na Constituição, está alinhado com este objectivo. Se cada um de nós conhecer este artigo, vai entender quem somos, por que somos e por que cada um de nós tem de levar consigo a Bandeira do patriotismo, para defender a nossa soberania, independentemente dos credos, convicções políticas, do sexo, etnia ou da raça.
Na tomada de posse do Presidente João Lourenço falou da necessidade de maior
consciencialização política do cidadão (sobretudo dos mais jovens), bem como da
ampliação e do fomento de espaços públicos de discussão plural, em salutar
respeito pela divergência. De lá para cá, o que mudou?
Não mudou nada. Mantenho a mesma convicção. Repetiria o que disse e nos
mesmos termos. Acho que temos todos de ter essa responsabilidade de criar
mecanismos para que possamos, na diferença, também um princípio constitucional,
respeitar a opinião de outrem e promover o debate de ideias.
É responsabilidade dos órgãos públicos criar condições para que isso
aconteça. Ao longo desta semana, o Tribunal Constitucional vai promover uma
série de encontros, em formato informal, para debater questões relacionadas à
protecção dos símbolos nacionais, cidadania, direitos fundamentais e direitos
humanos.
O Tribunal está a fazer a sua parte, a sociedade civil também pode fazer a
sua. Neste desafio, por ocasião do 14.º aniversário da Constituição, há
universidades que vão promover debates sobre um ou outro tema.
Perfil
Laurinda Jacinto
Prazeres Monteiro Cardoso
Nascida aos 17 de Junho de 1975
Natural de Porto-Amboim – Cuanza-Sul
Formação académica
Pós-graduação em Gestão de Empresas pela Católica Lisbon Business &
Economic School (2018), pós-graduação em Jurídico-empresariais pela Faculdade
de Direito da Universidade Agostinho Neto em cooperação com a Universidade de
Coimbra (2007),
Licenciada em Direito, opção Jurídico-Económicas pela Faculdade de Direito
da Universidade Agostinho, Angola (2001),
Actividade profissional
Juíza Conselheira do Tribunal
Constitucional (desde Agosto de
2021), foi secretária de Estado para a Administração do Território (2017-
2021 , coordenadora do Grupo de Apoio Técnico do Plano Integrado
de Intervenção nos Municípios, coordenadora do Grupo de Apoio Técnico para
Divisão Político-administrativa de Angola, Conselho Superior da Magistratura do
Ministério Público (2016- 2017), vogal do Conselho Superior da Magistratura do
Ministério Público, Ministério da Administração do Território (2010-2017),
directora do Gabinete Jurídico.
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