Contando talvez ninguém acredite, mas facto é que na Lunda-Norte, durante o consulado e sob protecção do então governador Ernesto Muangala, uma intrigante e milionária proeza chegou a ser realizada: uma empresa conseguiu impingir uma dívida de mais de 85 milhões de dólares norte-americanos ao Estado sem que, no entanto, tivessem sido desenvolvidas as actividades para as quais chegou a ser contratada.
Depois de quase um ano de investigação jornalística, que nos levou
inclusive à cidade do Dundo e às vilas do Nzagi (no município de Cambulo) e de
Lucapa, o !STO É NOTÍCIA traz agora em detalhe os meandros de um caso surreal,
que tem como protagonistas o antigo governador Ernesto Muangala, o amigo e
empresário Marcos Barros da Fonseca, incluindo uma deputada pelo círculo da
Lunda-Norte.
Aliás, foi precisamente no Dundo, no município do Chitato, onde o
empresário Marcos Barros da Fonseca, atendendo ao chamado do amigo e governador
Ernesto Muangala, se instalou, com o objectivo de ajudar o “amigo de longa
data” a sanar um conjunto de problemas que tinham que ver com a circulação
rodoviária e com a mobilidade de um modo geral.
É assim que a 5 de Junho de 2009, a Freimar, Lda., e o Governo Provincial
da Lunda-Norte celebraram um primeiro contrato de empreitada para asfaltar a
cidade do Dundo, numa extensão de 25 km, no valor de USD 22.353.000,00 (vinte e
dois milhões trezentos e cinquenta e três mil dólares americanos).
Entretanto, pouco menos de um mês depois, isto é, a 15 de Julho de 2009,
mais três contratos vão juntar-se ao primeiro, com a finalidade de serem
asfaltados e reabilitados mais 27 km de estradas na cidade de Dundo
(totalizando 52 km, quando somado ao primeiro contrato); 20 km na vila do Nzagi
e mais 20 km na vila de Lucapa.
Os quatro contratos perfaziam um total de 92 km, no valor de, cada uma das
empreitadas, USD 24 624 000,00 (vinte e quatro milhões seiscentos e vinte e
quatro mil dólares americanos), USD 19 600 000,00 (dezanove milhões e
seiscentos mil dólares americanos) e USD 19.060.000,00 (dezanove milhões e
sessenta mil dólares americanos), respectivamente.
O somatório dos quatro contratos perfazia um total de USD 85.637.000,00
(oitenta e cinco milhões seiscentos e trinta e sete mil dólares americanos).
Porém, no intervalo de sete dias, isto é, entre os dias 17 e 22 de Julho de
2009, dois e cinco dias depois da celebração dos referidos contratos, a empresa
Freimar, Lda., sem, no entanto, ter executado alguma obra, remeteu ao Governo
Provincial da Lunda-Norte quatro facturas a cobrar o valor global
contratualizado.
Declaração da dívida ao secretário de Estado do Tesouro
Catorze meses depois, isto é, no dia 9 de Novembro de 2010, o governador
provincial em exercício Porfírio Muacassange — afilhado de casamento do
empresário Marcos Barros da Fonseca —, e então delegado provincial das Finanças
Alberto Calamba, endereçaram ofícios ao então secretário de Estado do Tesouro
Manuel Neto Costa, em como declaravam a existência da dívida, reforçando
igualmente a cobrança dos USD 85.637.000,00 alegadamente devidos à Freimar,
Lda.
De acordo com referidos ofícios, a dívida com a Freimar, Lda., deveu-se a
trabalhos de asfaltagem das estradas na cidade do Dundo e nas vilas do Nzagi e
Lucapa, quando a referida empresa sequer tinha tido presença nas nas referidas
vilas, facto que este portal pôde confirmar junto de fontes locais.
Na viagem que o !STO É NOTÍCIA realizou, quer à cidade do Dundo, quer às
vilas do Nzagi e Lucapa, comprovou isso mesmo: ninguém se lembra de ter visto a
Freimar, Lda., a realizar trabalhos de asfaltagem de 52 km de estradas no
Dundo, nem mesmo o Gabinete de Estudo e Planeamento Estatístico foi capaz de
indicar as artérias ou vias que tivessem sido intervencionadas pela referida
empresa.
Uma outra nota que salta à vista no rol de documentos a que tivemos acesso
tem que ver com o facto de a cobrança realizada pela Freimar, Lda., ao Governo
Provincial da Lunda-Norte, à data dos factos, não se ter feito acompanhar dos
autos de vistoria e de medição dos trabalhos.
Estes autos de vistoria e de medição, porém, são assinados já a posteriori
pelo então representante do dono da obra, de nome Lino dos Santos, a 22 de
Novembro de 2010.
De acordo com fontes consultadas por este portal, nessa altura a Freimar,
Lda., “não tinha realizado o objecto dos contratos, exceptuando alguns troços
intervencionados na cidade do Dundo, que foram pagos pontualmente”.
A mesma fonte, para reforçar a informação, chegou a sugerir uma consulta ao
fluxo de pagamentos do Governo Provincial da Lunda-Norte à empresa Freimar
entre 2009 e 2013), já que as empreitadas do Nzagi, Lucapa e boa parte das
estradas do Dundo, segundo a mesma, foram executadas pela Mota Engil e por uma
empresa chinesa.
Na análise feita aos pagamentos por ordem de saque à empresa Freimar, Lda.,
referentes ao período entre 2009 e 2013, existem, entretanto, quatro despesas
pagas a assinlar:
A primeira, referente a 80 757 000,00 kz (oitenta milhões, setecentos e
cinquenta e sete mil kwanzas); a segunda, de 423 532 800,00 kz (quatrocentos e
vinte e três milhões, quinhentos e trinta e dois mil e oitocentos kwanzas),
ambas emitidas a 30 de Novembro de 2010, e pagas a 22 de Maio de 2023,
enquadradas na categoria ‘Outras Despesas de Capital’.
A 22 de Maio de 2023, são igualmente pagas duas outras despesas emitidas a
19 de Setembro de 2011, no valor de 109 999 999,00 kz (cento e nove milhões,
novecentos e noventa e nove mil e novecentos e noventa e nove kwanzas) e a 20
de Junho de 2012, no valor de 100 000 000,00 kz (cem milhões de kwanzas).
Em 2020, o Grupo Técnico de Apoio ao Credor do Estado (GTACE), chegou a
solicitar à então directora provincial do Gabinete de Estudo e Planeamento
Estatístico (GEPE) da Lunda-Norte (actualmente deputada à Assembleia Nacional
pelo círculo da Lunda-Norte) Edna Beneque Quechimalunga, informações sobre o
crédito que a Freimar, Lda., reclamava desde 2009, tendo esta confirmado; o que
levou a que o Ministério das Finanças ordenasse o pagamento de uma tranche,
ficando o remanescente do valor para “um momento de maior conforto financeiro”.
Na mesma ocasião em que a Freimar, Lda., recebeu o pagamento das despesas
já mencionadas, referentes a facturas do período de 2009 e 2013, a 22 de Maio
de 2023, a empresa recebeu do Estado, via ordens de saque, vários outros pagamentos,
emitidos pela Unidade de Gestão da Dívida Pública (UGD):
27 096 000,00 (emitida a 31.03.21)
27 519 375,00 (emitida a 31.03.21)
37 306 500,00 (emitida a 31.03.21)
27 096 000,00 (emitida a 20.08.21)
27 519 375,00 (emitida a 20.08.21)
37 306 500,00 (emitida a 20.08.21)
Total 183 843 750,00kz
27 096 000,00 kz (emitida a 20.04.22)
27 375 000,00 kz (emitida a 20.04.22)
37 306 500,00 kz (emitida a 20.04.22)
27 096 000,00 kz (emitida a 08.10.22)
27 519 375,00 kz (emitida a 08.10.22)
37 306 500,00kz (emitida a 08.10.22)
338 700 000,00kz (emitida a 08.10.22) —Amortização da dívida interna
Total 522 543 750,00kz
Um outro facto que salta à vista é o facto de o Ministério das Finanças ter
procedido ao pagamento do valor correspondente à asfaltagem de 3km da estrada
que vai da rotunda do Samakaka até à centralidade do Mussungue, que não eram
objecto dos quatro contratos de empreitadas, mas incluídos no pagamento
efectuado em 2021.
Ao que apurou este portal, a factura referente a esta obra, realizada
aquando da visita ao Dundo do ex-Presidente da República José Eduardo dos
Santos, foi liquidada em 2013 pelo Ministério da Construção.
Questionário sobre a alegada ‘dívida fictícia’ com a empresa Freimar, Lda
(ao qual o ex-governador da Lunda-Norte Ernesto Muangala se furtou a responder,
após contacto telefónico e acertado que o faria via WhatsApp)
Excelentíssimo Senhor Dr.º Ernesto Muangala
Queira, antes de mais aceitar, as nossas cordiais saudações e respeitosos
cumprimentos.
Na passada terça-feira, 19 de Março de 2023, estive à conversa com o senhor
Marcos Barros da Fonseca, representante legal da empresa Freimar, Lda., no seu
escritório, sito na Rua…[omitido de propósito], do distrito urbano do
[igualmente omitido], em Luanda.
Em mãos levava comigo um dossier relacionado com uma alegada ‘dívida
fictícia’ ou ‘fabricada’, contraída pelo Governo Provincial da Lunda-Norte,
aquando do seu consulado na Lunda-Norte enquanto governador.
Dada a sensibilidade do assunto em si e o facto de estarmos neste momento a
cruzar um conjunto de informações, de modo a produzir uma matéria que de facto
possa reflectir a verdade dos factos, sirvo-me da presente para lhe colocar
algumas questões — algumas das quais decorrentes da conversa que mantive com o
senhor empreiteiro e outras fruto de informações a que tive acesso com base em
documentos.
Ora, assim sendo, aqui vão as nossas inquietações enquadradas, primeiro, no
contexto em que elas se inserem, e, segundo, nas 12 questões que, de resto,
resumem as nossas grandes dúvidas:
Na abordagem feita com o senhor Marcos Barros Fonseca, foi-nos informado
que a presença da Freimar, Lda., na Lunda-Norte, em 2008, deveu-se a um convite
pessoal feito pelo senhor governador Ernesto Muangala, logo a seguir à sua
tomada de posse, dado que mantêm uma relação de amizade de longa data.
Foi também nos informado que, quando chegou a governador da Lunda-Norte, um
dos maiores problemas que encontrou no Dundo e demais municípios e comunas foi
o das estradas, razão pela qual estendeu o convite ao empresário Barros
Fonseca, no sentido de contar com a sua colaboração.
Foi-nos também dito pelo representante legal da Freimar, Lda., que, nesse
período em que o chega ao Governo Provincial da Lunda-Norte, tinha o senhor
governador garantias do ex-Presidente José Eduardo dos Santos de que o ajudaria
a atender sobretudo a esta agenda particular da mobilidade e das estradas.
Que foram estas garantias que o levaram a telefonar para o empresário/amigo
Barros Fonseca no sentido de, com ele, começar uma série de empreitadas na
Lunda-Norte e é sobre estas empreitadas que gostávamos de mais adiante colocar
um conjunto de questões.
O senhor Marcos Barros da Fonseca deu-nos também conta de que as obras
começaram a ser executadas em 2008, sem, entretanto, haver qualquer tipo de
contrato e sem qualquer pagamento do down payment destas referidas obras.
Aliás, disse mais: que, numa primeira fase, foram investidos 31 milhões e
500 mil dólares norte-americanos, retirados do caixa da Freimar, Lda., para
atender a esta demanda do Governo Provincial da Lunda-Norte então liderado pelo
Dr.º Ernesto Muangala.
Disse-nos também que boa parte das acções que foram feitas nem sequer foram
cobradas, por terem sido feitas de boa-fé. Apontou como exemplos trabalhos de
terraplanagem e outros que a Freimar, Lda., executou, não no quadro da
responsabilidade social, mas porque assim entendia como sendo um “chamado do
Partido”.
Até porque, enfatizou o mesmo, “naquela altura o partido cobrava a
contribuição dos seus militantes e ele como ‘bom militante’ não teve mãos a
medir e saiu a acudir a situação da Lunda-Norte, a convite do então governador
provincial”, como já referido acima.
Entre os dias 5 de Junho e 15 de Julho de 2009, isto é, pouco mais de um
mês, foram assinados quatro contratos, sendo que, num só dia, a 15 de Julho de
2009, foram assinados três. O somatório destes quatro contratos perfez um
global de USD 85 637 000,00. Refira-se que eram contratos que visaram a
asfaltagem da cidade do Dundo, Vila do Nzagi e Lucapa, num total de 95 km.
Desde a fase de assinatura dos contratos até às primeiras cobranças
decorreram apenas dois dias, uma vez que, no dia 17 de Julho, sem que as obras
previstas nesses contratos tivessem sido executadas, a Freimar, Lda., remeteu
ao governo da Lunda-Norte facturas a cobrar o VALOR GLOBAL. Não o down payment,
mas, sim, o VALOR GLOBAL.
A 9 de Novembro de 2010, isto é, cerca de 14 meses depois, o governador
provincial em exercício, o senhor Porfírio Muacassange (por sinal afilhado de
casamento do senhor Marcos Barros da Fonseca) e o então(?) delegado provincial
das Finanças Alberto Calamba endereçaram ofícios ao então secretário de Estado
do Tesouro Manuel Neto Costa, a declarar a existência da referida dívida e
reforçaram a cobrança dos USD 85.637.000,00 — segundo afirmam —, devidos à
Freimar, Lda., pela asfaltagem das estradas na cidade do Dundo e nas vilas do
Nzagi e Lucapa.
O senhor Marcos Barros da Fonseca disse-nos também que, “naquela altura,
por razões políticas, muitas coisas eram feitas de forma anormal”, indicando o
exemplo do seu consulado na Lunda-Norte e o caso particular da Freimar, Lda.
Ainda fomos a tempo de lhe questionar se não poderíamos substituir esse
‘anormal’ por ‘ilegal’, porém, este respondeu-nos que “não”. “Que eram
simplesmente feitas de modo ‘anormal’”.
Poderíamos, entretanto, enumerar mais elementos saídos da conversa, mas,
por uma questão de economia de tempo, iremos, a seguir, directamente, às
questões:
Era este o procedimento de contratação no seu governo: chamar amigos e
atribuir-lhes obras, com a promessa de que tinha garantias do ex-Presidente da
República para o pagamento das empreitadas?
Que garantias o senhor nos poderá dar de que o convite feito à empresa
Freimar, Lda., não terá igualmente beneficiado o senhor governador, dada até a
relação de amizade existente entre o senhor e o empreiteiro Barros Fonseca?
Que garantias o senhor nos poderá apresentar de que não foi violada, em
circunstância alguma, a Lei da Probidade Pública ou que não ocorreu nenhuma
acção que configure peculato, ou seja, que o senhor não esteve no fundo a fazer
negócio consigo mesmo?
À luz da Lei dos Contratos Públicos, a contratação simplificada (ajuste
directo) é uma competência exclusiva do Titular do Poder Executivo. Logo, como
o senhor explica que tivessem sido rubricados quatro contratos no valor global
de USD 85.637.000,00 sem a autorização do ex-Presidente José Eduardo dos
Santos?
Terá tido o senhor esta autorização de proceder, como procedeu, só com a
Freimar, Lda., ou aconteceu igualmente com outras mais empresas? E, se de facto
recebeu esta autorização do Titular do Pode Executivo, poderia, se faz favor,
partilhar connosco?
O procedimento de contratação da Freimar, Lda., para as referidas
empreitadas, era também o aplicável a outras entidades empresariais com as
quais o Governo Provincial da Lunda-Norte, sob seu comando, trabalhava ou foi
apenas um caso excepcional? Se, sim, diga-nos então porquê. Se era um
procedimento normal, poderia indicar-nos uma outra empresa que tenha
beneficiado deste procedimento?
O senhor Marcos Barros da Fonseca disse-nos que a cobrança das facturas dos
quatro contratos, foi feita dois e cinco dias depois da assinatura dos mesmos
“porque havia uma desconfiança a pairar no ar de que os valores nunca seriam
pagos, porque já vinham com dívidas desde o ano de 2008”, quando o senhor o
convidou para ir à Lunda-Norte ajudá-lo a sanar estes problemas das estradas.
Quer comentar isso com factos?
Era também um procedimento normal as empresas fazerem cobranças ao Governo
Provincial da Lunda-Norte (de obras não executadas), sem os respectivos autos
de vistoria e de medição dos trabalhos? Poderia o senhor partilhar connosco
alguns autos de medição destas obras ou indicar, a nível do GPLN, quem nos
pudesse facultar?
A Freimar, Lda., fez uma empreita de asfaltagem de 3km da estrada que vai
da Rotunda do Samakaka até à Centralidade do Mussungue, por ocasião da visita
do ex-Presidente José Eduardo dos Santos. Este valor chegou a ser pago pelo
Ministério das Finanças em 2020, mas, na verdade, a factura desta obra já tinha
sido liquidada em 2013 pelo Ministério da Construção. Como se explica isso?
No quadro dos quatro contratos, o senhor nos poderia dizer, ao certo, que
trabalhos foram executados e quais não foram, uma vez que o próprio empreiteiro
Barros da Fonseca admite que nem todos foram executados e que, por isso,
recebeu apenas “uns míseros 900 milhões de kwanzas”?
Como se compreende que a Freimar, Lda., tivesse remetido ao governo da
Lunda-Norte facturas a cobrar o VALOR GLOBAL? Não o down payment, mas, sim, o
VALOR GLOBAL sem ter executado as obras e admitindo agora que de facto nem tudo
que estava previsto foi executado?
É verdadeiro que a Freimar, Lda., tivesse executado, a título de “boa-fé”,
alguns trabalhos de terraplanagem em algumas artérias do Dundo e vilas da
Lunda-Norte? Este foi só o caso da Freimar, Lda., ou também da empresa chinesa
que ali actuou e da Mota-Engil, que também actuavam na província, quando o
senhor era governador?
Eis as nossas questões. Por uma gestão de agenda de trabalho, o Isto É Notícia
tem, desde a data de envio deste questionário, oito dias úteis para dar
continuidade e fechar a matéria.
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