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Dra. Alda Juliana Chikoti e o Rio da Nossa História - Sousa Jamba

A condecoração da Dr. Alda Juliana Paulo Sachiambo Chikoti com a Medalha dos 50 Anos da Independência de Angola não é apenas um gesto cerimonial. É, acima de tudo, um acto de justiça histórica e uma afirmação simbólica do lugar que certas figuras silenciosas ocupam na construção moral e cívica de uma nação. Mulheres como Alda Juliana, afastadas das luzes mediáticas mas atentas à substância da vida pública, carregam em si a memória viva de Angola — com as suas fraturas, os seus sobressaltos e as suas possibilidades.

Nascida em 1956 no município do Kachiungo, província do Huambo, Alda Juliana é professora, politóloga, mãe, avó, antiga deputada e dirigente parlamentar. Nos últimos anos, desempenhou o papel de embaixatriz em Bruxelas, onde continuou a representar Angola em círculos multilaterais discretos mas estratégicos. A sua voz (serena, lúcida, firmemente ancorada na memória colectiva) tem sido fundamental para compreender as transições que marcaram o país: do colonialismo à guerra civil, da reconciliação aos dilemas do presente.

Compreender verdadeiramente o seu percurso exige pausa. Tal como a própria história de Angola, a sua trajectória é marcada por complexidade e resistência a leituras apressadas. A sua intervenção num capítulo da antologia a publicar, intitulada Que Futuro para Angola, Considerando o seu Passado e Presente?, transcende o registo autobiográfico. É uma proposta de cidadania. Um mergulho no imaginário rural, na construção institucional, na dor da guerra fratricida, mas também na dignidade das mulheres enquanto guardiãs da esperança e da continuidade.

A sua escrita convida-nos a escutar os silêncios da história, a olhar com coragem para as entrelinhas do medo colectivo e a reconhecer a força regeneradora da memória. O que está em causa não é apenas um testemunho pessoal; é uma cartografia da angolanidade feita de terra lavrada, de cânticos em umbundu, de lutos silenciosos e de um amor teimoso por um país tantas vezes incompreendido por si mesmo.

Recordo aqui uma afirmação do meu irmão, Jaka Jamba, numa entrevista de 1992: a história de Angola é como um grande rio. E um rio não é só o seu leito principal. Tem afluentes, deltas, remansos, estrondos, erosões e obstáculos que o fortalecem. A figura de Alda Juliana Chikoti é um desses afluentes; discreto, resiliente, indispensável. Representa as margens férteis da história nacional: as mulheres que ensinaram, nutriram, escreveram, cuidaram, e mantiveram acesa a chama da decência em tempos sombrios.

Num tempo em que a retórica política parece muitas vezes oca e desprovida de densidade histórica, o pensamento de figuras como Alda Juliana devolve ao discurso público uma espessura ética e intelectual rara. Celebrar o seu percurso é reconhecer que a história de Angola não se escreve apenas nas avenidas asfaltadas da capital, mas também nas aldeias do planalto, nas salas de aula das missões, nos arquivos de família, nos gestos anónimos e nas palavras que, por décadas, ficaram por dizer.

Os 50 anos da independência de Angola não devem ser apenas pretexto para festas protocolares ou slogans nostálgicos. Devem ser uma oportunidade para escutar as correntes subterrâneas da nossa história. Vozes como a de Alda Juliana fluem com clareza nesse leito invisível. Reconhecê-las é um acto de maturidade nacional. É também uma pedagogia para o futuro.

Ao distinguir esta mulher, o Estado angolano dá um sinal claro de que a grandeza de uma nação se mede não apenas pelo brilho dos seus heróis visíveis, mas pela capacidade de honrar aqueles que, com persistência e silêncio, moldaram os alicerces da convivência democrática. Que o exemplo de Alda Juliana Chikoti inspire novas gerações a compreender que os rios da história não se dominam com arrogância, mas se navegam com humildade, escuta e sentido de pertença.

Todos os esforços que nos reúnem à mesma mesa merecem o mais elevado reconhecimento. Todos os gestos que nos convidam a pensar colectivamente e a superar a fragmentação do momento exigem ser acolhidos com seriedade e nobreza.

Seria leviano ignorar a generosidade do Presidente da República. Seria injusto desvalorizar o papel das instituições que tornam possível este reconhecimento.

Haverá sempre opiniões divergentes, e haverá sempre espaços para a sua expressão. Mas há momentos que nos convocam a transcender a discórdia. Há momentos em que a maturidade política consiste em preferir a visão longa ao impulso imediato, a construção ao ressentimento.

A entrega desta medalha à ilustre senhora, a par de outros homenageados, é um desses momentos. Um acto de clarividência. Um gesto de reconciliação. Uma afirmação de que a história de Angola se constrói com memória, imaginação e coragem partilhada.

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