Recentemente, em Lisboa, duas manifestações ocorreram em paralelo, revelando as divisões profundas na sociedade portuguesa. De um lado, uma multidão exigia justiça por Odair Moniz, um homem negro morto a tiro por um polícia em circunstâncias controversas, denunciando assim a brutalidade policial e o racismo sistémico.
Do outro lado, uma
manifestação organizada pelo partido de extrema-direita Chega reunia apoiantes
do agente policial envolvido no incidente. O que causou ainda mais espanto foi
a presença de uma mulher negra, de origem angolana, entre os apoiantes do
Chega, que se destacava ao afirmar publicamente que “ama os brancos” e “odeia
os negros”, descrevendo as pessoas da sua comunidade como “aproveitadoras”, que
não respeitam o país. Este contraste impressionante revela os efeitos
persistentes da alienação colonial e do auto-ódio, fenómenos que Frantz Fanon,
Aimé Césaire e James Baldwin analisaram com acuidade nas suas obras.
Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Frantz Fanon descreve
como o colonizado acaba por interiorizar o olhar do colonizador, vendo em si
próprio uma alteridade desvalorizada, da qual procura fugir para se aproximar
do modelo imposto. Este processo, que o leva a adotar comportamentos e valores
do colonizador, resulta numa alienação profunda e num ódio a si mesmo. Para
Fanon, “o negro corre em direção ao branco”, e essa assimilação conduz ao
renegar de si mesmo e da própria identidade.
A direita e a coerência: uma adesão que levanta questões
Certamente, uma pessoa negra pode optar por apoiar ideias
de direita de acordo com as suas convicções pessoais. Esta escolha política,
embora surpreendente para alguns, pode ser coerente para ela. No entanto, este
posicionamento torna-se perturbador quando se baseia num ódio a si mesmo e à
sua própria comunidade. Para Fanon, esta alienação do colonizado face ao
colonizador leva a um servilismo e a uma submissão aos ideais do colonizador,
um traço que ele descreve como um legado das estruturas coloniais. Este
fenómeno de auto-desvalorização ecoa no apoio desta mulher a um partido de
extrema-direita, que defende ideais contrários aos interesses da sua própria
comunidade.
Uma independência confiscada: os imaginários coloniais
perpetuados nos PALOP
As independências dos países africanos lusófonos (PALOP) poderiam ter marcado
uma viragem em direção a uma emancipação cultural e identitária. Contudo,
muitas vezes perpetuaram as estruturas coloniais, onde a cultura e o orgulho
africano foram abafados em favor de uma elite desconectada, que mantém as
opressões herdadas do colonizador. Fanon descrevia este processo como um
“mimetismo do colonizador”, onde a elite dos países recém-independentes se
torna uma extensão do poder colonial, privilegiando os interesses ocidentais em
detrimento de uma verdadeira soberania africana. Isso gerou gerações que
procuram, consciente ou inconscientemente, distanciar-se da sua africanidade,
percebendo-a como um fardo em vez de uma riqueza.
O auto-ódio : um mal enraizado na comunidade lusófona
A mulher presente nesta manifestação é apenas um exemplo
deste fenómeno de ódio a si mesmo. Embora não pareça ser uma figura influente,
o seu discurso reflete uma alienação mais ampla. Ao ouvi-la, é evidente que não
estamos perante uma luz ou uma sumidade intelectual. Contudo, seria redutor
limitar a nossa crítica apenas a ela, pois este estado de espírito, tingido de
servilismo e de uma mentalidade de escravo, encontra-se em pessoas instruídas,
particularmente na lusofonia, incluindo escritores e intelectuais de renome.
Intelectuais desconectados da história e dos desafios da emancipação
No seio da comunidade lusófona, a ausência de figuras
intelectuais locais que promovam um verdadeiro orgulho negro e uma consciência
histórica é motivo de grande preocupação. Alguns escritores influentes, como
José Eduardo Agualusa e José Mena Abrantes, parecem desconectados das
realidades e dos desafios da emancipação africana. Agualusa, por exemplo,
afirmou num artigo para o Globo, "O poeta assassino", publicado a 28
de maio de 2022, que o evento mais traumático da história de Angola é o 27 de
Maio de 1977, minimizando assim o impacto da guerra civil angolana, que durou
quase trinta anos. Este conflito marcou profundamente o país, deixando pelo
menos dois mortos em quase todas as famílias angolanas e, ainda hoje, um
mutilado que carrega as cicatrizes físicas ou psicológicas desse período.
Ignorar este acontecimento central na história nacional revela uma desconexão
alarmante com a memória coletiva e com as dores que continuam a habitar os
lares angolanos.
Por sua vez, Mena Abrantes, uma figura destacada do
teatro angolano, afirmou publicamente (na página de Instagram de Agualusa) que
o personagem Otelo, de Shakespeare, não é negro. Esta falta de conhecimento dos
símbolos históricos da representação negra e da própria história de Angola é
inquietante, sobretudo vindo de figuras supostamente influentes, que deveriam
representar a intelligentsia cultural angolana. Este facto evidencia a profundidade
da desconexão com a história e a identidade negra. Estes exemplos sublinham a
necessidade urgente de um renascimento intelectual para que Angola e outros
países lusófonos possam construir uma verdadeira emancipação cultural. Enquanto
figuras influentes continuarem a minimizar ou a reinterpretar a história
africana, as gerações futuras arriscam-se a permanecer prisioneiras de
narrativas coloniais.
A urgência da descolonização das mentalidades
Nesta comunidade lusófona, onde as discussões sobre a descolonização
das mentalidades e a conscientização identitária estão ainda no início, a
necessidade de acelerar o processo de reapropriação cultural e de orgulho
africano é premente. É tempo de implementar, nos países africanos, políticas
que encorajem a juventude a reconectar-se com a sua história africana, com a
sua cultura, e a libertar-se das cadeias mentais impostas pelo colonialismo. Ao
integrar os ensinamentos de Fanon, Césaire e Baldwin, as comunidades negras
lusófonas poderiam encontrar ferramentas para curar essa alienação. O apoio de
uma pessoa negra a um partido de extrema- direita, que defende ideias
discriminatórias, é um sinal de alerta para as sociedades africanas lusófonas e
para as suas diásporas na Europa. É urgente quebrar as cadeias invisíveis
deixadas pelo colonialismo e construir uma identidade africana forte, orgulhosa
e autónoma. As vozes de Fanon, Césaire e Baldwin não são apenas lições do
passado, mas apelos à ação para um futuro onde a África lusófona possa
finalmente viver em dignidade, livre dos estigmas coloniais.
0 Comentários