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O ódio a si próprio na comunidade negra lusófona: quando os legados coloniais moldam a identidade - Ricardo Vita

Recentemente, em Lisboa, duas manifestações ocorreram em paralelo, revelando as divisões profundas na sociedade portuguesa. De um lado, uma multidão exigia justiça por Odair Moniz, um homem negro morto a tiro por um polícia em circunstâncias controversas, denunciando assim a brutalidade policial e o racismo sistémico.

Do outro lado, uma manifestação organizada pelo partido de extrema-direita Chega reunia apoiantes do agente policial envolvido no incidente. O que causou ainda mais espanto foi a presença de uma mulher negra, de origem angolana, entre os apoiantes do Chega, que se destacava ao afirmar publicamente que “ama os brancos” e “odeia os negros”, descrevendo as pessoas da sua comunidade como “aproveitadoras”, que não respeitam o país. Este contraste impressionante revela os efeitos persistentes da alienação colonial e do auto-ódio, fenómenos que Frantz Fanon, Aimé Césaire e James Baldwin analisaram com acuidade nas suas obras.

A alienação: um legado colonial persistente

Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Frantz Fanon descreve como o colonizado acaba por interiorizar o olhar do colonizador, vendo em si próprio uma alteridade desvalorizada, da qual procura fugir para se aproximar do modelo imposto. Este processo, que o leva a adotar comportamentos e valores do colonizador, resulta numa alienação profunda e num ódio a si mesmo. Para Fanon, “o negro corre em direção ao branco”, e essa assimilação conduz ao renegar de si mesmo e da própria identidade.

A direita e a coerência: uma adesão que levanta questões

Certamente, uma pessoa negra pode optar por apoiar ideias de direita de acordo com as suas convicções pessoais. Esta escolha política, embora surpreendente para alguns, pode ser coerente para ela. No entanto, este posicionamento torna-se perturbador quando se baseia num ódio a si mesmo e à sua própria comunidade. Para Fanon, esta alienação do colonizado face ao colonizador leva a um servilismo e a uma submissão aos ideais do colonizador, um traço que ele descreve como um legado das estruturas coloniais. Este fenómeno de auto-desvalorização ecoa no apoio desta mulher a um partido de extrema-direita, que defende ideais contrários aos interesses da sua própria comunidade.

Uma independência confiscada: os imaginários coloniais perpetuados nos PALOP

As independências dos países africanos lusófonos (PALOP) poderiam ter marcado uma viragem em direção a uma emancipação cultural e identitária. Contudo, muitas vezes perpetuaram as estruturas coloniais, onde a cultura e o orgulho africano foram abafados em favor de uma elite desconectada, que mantém as opressões herdadas do colonizador. Fanon descrevia este processo como um “mimetismo do colonizador”, onde a elite dos países recém-independentes se torna uma extensão do poder colonial, privilegiando os interesses ocidentais em detrimento de uma verdadeira soberania africana. Isso gerou gerações que procuram, consciente ou inconscientemente, distanciar-se da sua africanidade, percebendo-a como um fardo em vez de uma riqueza.

O auto-ódio : um mal enraizado na comunidade lusófona

A mulher presente nesta manifestação é apenas um exemplo deste fenómeno de ódio a si mesmo. Embora não pareça ser uma figura influente, o seu discurso reflete uma alienação mais ampla. Ao ouvi-la, é evidente que não estamos perante uma luz ou uma sumidade intelectual. Contudo, seria redutor limitar a nossa crítica apenas a ela, pois este estado de espírito, tingido de servilismo e de uma mentalidade de escravo, encontra-se em pessoas instruídas, particularmente na lusofonia, incluindo escritores e intelectuais de renome.

Intelectuais desconectados da história e dos desafios da emancipação

No seio da comunidade lusófona, a ausência de figuras intelectuais locais que promovam um verdadeiro orgulho negro e uma consciência histórica é motivo de grande preocupação. Alguns escritores influentes, como José Eduardo Agualusa e José Mena Abrantes, parecem desconectados das realidades e dos desafios da emancipação africana. Agualusa, por exemplo, afirmou num artigo para o Globo, "O poeta assassino", publicado a 28 de maio de 2022, que o evento mais traumático da história de Angola é o 27 de Maio de 1977, minimizando assim o impacto da guerra civil angolana, que durou quase trinta anos. Este conflito marcou profundamente o país, deixando pelo menos dois mortos em quase todas as famílias angolanas e, ainda hoje, um mutilado que carrega as cicatrizes físicas ou psicológicas desse período. Ignorar este acontecimento central na história nacional revela uma desconexão alarmante com a memória coletiva e com as dores que continuam a habitar os lares angolanos.

Por sua vez, Mena Abrantes, uma figura destacada do teatro angolano, afirmou publicamente (na página de Instagram de Agualusa) que o personagem Otelo, de Shakespeare, não é negro. Esta falta de conhecimento dos símbolos históricos da representação negra e da própria história de Angola é inquietante, sobretudo vindo de figuras supostamente influentes, que deveriam representar a intelligentsia cultural angolana. Este facto evidencia a profundidade da desconexão com a história e a identidade negra. Estes exemplos sublinham a necessidade urgente de um renascimento intelectual para que Angola e outros países lusófonos possam construir uma verdadeira emancipação cultural. Enquanto figuras influentes continuarem a minimizar ou a reinterpretar a história africana, as gerações futuras arriscam-se a permanecer prisioneiras de narrativas coloniais.

A urgência da descolonização das mentalidades

Nesta comunidade lusófona, onde as discussões sobre a descolonização das mentalidades e a conscientização identitária estão ainda no início, a necessidade de acelerar o processo de reapropriação cultural e de orgulho africano é premente. É tempo de implementar, nos países africanos, políticas que encorajem a juventude a reconectar-se com a sua história africana, com a sua cultura, e a libertar-se das cadeias mentais impostas pelo colonialismo. Ao integrar os ensinamentos de Fanon, Césaire e Baldwin, as comunidades negras lusófonas poderiam encontrar ferramentas para curar essa alienação. O apoio de uma pessoa negra a um partido de extrema- direita, que defende ideias discriminatórias, é um sinal de alerta para as sociedades africanas lusófonas e para as suas diásporas na Europa. É urgente quebrar as cadeias invisíveis deixadas pelo colonialismo e construir uma identidade africana forte, orgulhosa e autónoma. As vozes de Fanon, Césaire e Baldwin não são apenas lições do passado, mas apelos à ação para um futuro onde a África lusófona possa finalmente viver em dignidade, livre dos estigmas coloniais.

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