Muito se fala de Reconciliação Nacional em Angola desde o fim da guerra, em 2002. Politicamente, alcançámos a paz e uma unidade territorial. Mas no plano cultural, até que ponto nos reconciliámos de verdade? Reconciliar não é só calar as armas; é também encarar os traumas, dar voz aos que não a tiveram, integrar as diferenças e curar as feridas da memória. E nesse aspecto, ainda há silêncios gritantes. Um desses silêncios foi, sem dúvida, o 27 de Maio de 1977. Durante décadas, este massacre – em que o regime de Agostinho Neto eliminou sumariamente milhares de angolanos acusados de fraccionismo, numa violenta purga interna – permaneceu tabu. A versão oficial reduzia-o a uma nota de rodapé ou culpabilizava exclusivamente as vítimas, enquanto famílias choravam desaparecidos em segredo. Somente passados quarenta anos, já sob outro Presidente, se iniciou um reconhecimento público tímido desse horror, com pedidos de desculpas e a entrega de restos mortais às famílias. Ora, se a reconciliação política visava unir o país, a cultural exigiria expor e reconhecer esse tipo de trauma, integrá-lo na narrativa nacional para que nunca mais se repita. Como podemos falar em identidade cultural reconciliada se uma mãe de 1977 nunca pôde velar o filho ou mesmo pronunciar seu nome sem medo? Cada tragédia silenciada – seja o 27 de Maio, sejam os massacres coloniais como o da Baixa de Cassanje em 1961, seja o sofrimento difuso do povo durante a guerra civil – representa uma peça ausente no mosaico da nossa memória coletiva. Reconciliação cultural implica recolocar todas essas peças sobre a mesa.
Outro silêncio pernicioso recai sobre as línguas e culturas autóctones. A colonização portuguesa promoveu a ideia de uma Angola una sob a língua portuguesa, abafando deliberadamente as línguas africanas locais. Após a independência, em vez de uma explosão de valorização das línguas nacionais, optou-se por mantê-las relativamente à margem, temendo talvez que o reconhecimento da diversidade linguística pudesse ameaçar a unidade nacional recém-conquistada. Assim, tribalismo e regionalismo tornaram-se palavras proibidas, frequentemente confundidos com qualquer afirmação de identidade local. Nesse processo, perdemos oportunidades de nos reconciliarmos culturalmente conosco mesmos – porque reconciliação cultural também é reconciliar Angola consigo mesma, com a sua pluralidade interna. Até hoje, quem fala Umbundu ou Kikongo muitas vezes sente que deve “deixar a língua à porta” nos espaços formais; alunos das cidades crescem alheios ao património literário oral das suas regiões; e as próprias línguas correm risco de erosão entre os jovens urbanos. Felizmente, há sinais de mudança: políticas para integrar as línguas nacionais no ensino básico e alfabetização começaram (embora muito devagar) a ser implementadas. Mas a resistência atávica persiste em setores que ainda veem nessas iniciativas uma ameaça à hegemonia do português. O verdadeiro desafio da reconciliação cultural será abraçar o multilinguismo não como divisão, mas como riqueza, garantindo que uma criança kimbundu ou tchokwe possa aprender em sua língua sem que isso a exclua da cidadania plena.
Há ainda os tabus estéticos e comportamentais herdados que precisam de debate aberto. Por exemplo, durante muito tempo vigorou no imaginário nacional a associação entre “o que é civilizado” e os modos europeus: vestir fato e gravata, alisar o cabelo “crespo”, preferir músicas importadas em vez de ritmos locais. Grande parte da nossa média e publicidade perpetuou padrões estéticos eurocentrados, enaltecendo a pele clara, o cabelo liso, a feição caucasiana como ideal de beleza e profissionalismo. Inúmeras jovens angolanas cresceram sem ver na televisão mulheres com tranças ou afros orgulhosamente assumidos; locutores de TV e chefes institucionais ostentavam quase sempre trajes ocidentais, como se o uso de indumentária tradicional ou simplesmente africana denunciasse menor seriedade. Colorismo e preconceito de tom de pele, raramente discutidos, manifestam-se em detalhes do quotidiano: a empregada doméstica ainda chamada de “criada” e tratada de modo subalterno; a ausência visível de dirigentes de pele retinta nos cargos de topo de certas instituições; o riso contido diante de um nome africano “difícil” de pronunciar enquanto se endeusam nomes estrangeiros. São pequenos tabus e desconfortos que nunca foram realmente enfrentados na praça pública. A retórica da nação una e “cor de ébano” do pós-independência — herdeira da angolanidade e da negritude então exaltadas — parece ter ocultado as tensões internas, em vez de resolvê-las. Reconciliação cultural nacional significa ter coragem de expor esses não- ditos: admitir que também sofremos de racismos interiorizados, de divisões étnicas latentes e de complexos coloniais mal curados. Só encarando esses fantasmas podemos exorcizá-los.
Por fim, reconciliação implica escancarar o debate sobre o que significa ser
angolano hoje. Os nossos imaginários herdados muitas vezes cristalizaram a
ideia de Angola numa moldura dos anos 1970: o país revolucionário, de homens
vestidos de camuflado, AKM às costas, lutando contra o colono, falando
português com orgulho por ser língua de unidade, dançando semba e exibindo a
bandeira. Muito do que veio depois – a modernização caótica de Luanda, o boom
petrolífero e a desigualdade extrema, a emergência de novas subculturas urbanas
(kuduro, hip-hop, kizomba), a diáspora pós-guerra, as igrejas afro-evangélicas,
etc. – ou foi marginalizado ou visto como ameaça aos valores tradicionais. Mas
evitar discutir não impediu essas forças de moldarem a sociedade. Pelo
contrário, criou uma esquizofrenia cultural: oficialmente, exalta-se uma certa
imagem monolítica da nação; na prática, vive-se outra realidade, com valores e
influências globais em ebulição. Reconciliação cultural demanda reconciliar
também a Angola oficial com a Angola real, alinhando o discurso às vivências.
Significa, por exemplo, aceitar que um jovem de hoje possa sentir-se tão
angolano a ouvir rap do MCK quanto outro a ouvir os poemas de Agostinho Neto –
e que ambos têm espaço legítimo na construção da identidade nacional.
As novas vozes insurgentes: arte e pensamento na linha da frente
Apesar de todo esse panorama de tensões e silêncios, há razões para esperança. De Cabinda ao Kunene, de Lisboa à diáspora nas Américas, vozes emergentes têm-se levantado para contestar narrativas hegemónicas e oferecer uma visão alternativa – uma visão de Angola por inteiro. São artistas, intelectuais, ativistas, escritores marginalizados pelas estruturas tradicionais, que encontraram brechas para se expressar e ganhar público, dentro ou fora do país. No campo das letras, uma geração de novos escritores floresceu desde os anos 2000, muitas vezes à revelia do sistema editorial formal. Com editoras nacionais em declínio e pouco apoio institucional, eles recorreram à auto-publicação e às redes sociais para divulgar o seu trabalho. Poetas e cronistas de bairro publicam em blogues e páginas de Facebook, contornando a necessidade de aprovação dos “donos da cultura”. Há movimentos literários espontâneos nas cidades – como o Lev’Arte ou o Litteragris – organizando recitais de poesia em praças e escolas, levando literatura onde antes não chegava. Um fenómeno particularmente vibrante é o spoken word e a poesia oral, muitas vezes associada à cultura hip-hop: slam poets angolanas, por exemplo, têm-se destacado em batalhas de versos, dando voz poética às frustrações de ser mulher negra num ambiente patriarcal, ou de ser jovem num país de velhos dirigentes. Essa cena vocal retoma a antiga tradição oral africana com roupagem urbana, afirmando-se como veículo de resistência e consciência crítica. Não por acaso, é frequentada e aplaudida por muitos que nunca se sentiram representados nos círculos literários convencionais.
Na música, o exemplo paradigmático é o Kuduro. Nascido nos musseques de Luanda em finais da guerra civil, o kuduro foi durante muito tempo desprezado pela elite, que o tachava de música “de marginais”, “coisa de bandidos” ou de gente sem formação. De facto, nos seus primórdios, esta mistura explosiva de batida eletrónica e linguajar popular carregava uma rebeldia crua: falava das durezas do gueto, satirizava políticos, explicitava sexualidade e violência com a sinceridade de quem vive isso todos os dias. Escandalizou os bem-pensantes. Muitos intelectuais recusavam reconhecê-lo como música, numa atitude paternalista semelhante à que, noutra época, desdenhou o samba no Brasil ou o jazz nos EUA. Contudo, a força do kuduro residia justamente em dar voz a quem era invisível – jovens sem emprego, moradores de bairros auto-construídos, a geração nascida e criada em tempo de guerra. E essa força era impossível de conter: o kuduro espalhou-se como pólvora, primeiro em Angola e depois pelo mundo. Ironicamente (e felizmente), o que começou “contestado na esquina” acabou celebrado nas pistas internacionais. Hoje, DJs europeus misturam kuduro, pesquisadores o estudam, e termos do calão kudurista incorporaram-se ao falar quotidiano. Essa trajetória, porém, não foi isenta de tensão: ao ganhar aceitação global e entrar nas festas da classe média, o kuduro também sofreu certo “branqueamento” de conteúdo, perdendo um pouco da sua verve contestatária original para se tornar palatável a patrocinadores e rádios comerciais. Ainda assim, permanece como símbolo do poder cultural das periferias: mesmo sem apoio inicial, a criatividade do povo encontrou caminho e impôs respeito. Outros géneros urbanos seguiram senda parecida – o rap de intervenção social, por exemplo, com figuras como MCK e Ikonoklasta (Luaty Beirão) a rimarem verdades incómodas sobre corrupção e desigualdade, pagando o preço da censura e até da prisão, mas inspirando muitos jovens a pensar por si.
Também nas artes plásticas e performativas surgem vozes disruptivas. Pense-se em Kiluanji Kia Henda, que pela fotografia e instalações multimédia reimagina a História africana, desmontando mitos coloniais e pós-coloniais – o seu trabalho “Homem Novo”, por exemplo, parodia a estátua do homem moderno socialista para questionar o legado deixado pelos libertadores africanos. Ou em artistas como Ana Silva e Délio Jasse, que resgatam memórias pessoais e coletivas em colagens e fotografias, frequentemente incorporando objetos do quotidiano angolano, numa afirmação de que a nossa vivência comum importa, sim, como arte. Estes criadores têm obtido reconhecimento internacional, provando que o mundo valoriza a nossa originalidade quando nós próprios a abraçamos. Entretanto, muitos deles foram primeiro aclamados lá fora para só depois serem descobertos internamente – reflexo de um sistema que ainda olha desconfiado para o inovador até que este receba o aval externo. Felizmente, a maré está a mudar. Há eventos e espaços independentes em Luanda dedicados à nova geração: galerias alternativas, feiras de arte jovem, coletivos de teatro experimental. Nas províncias, iniciativas comunitárias florescem, como centros culturais apoiados por ONG onde jovens podem aprender música tradicional e informática lado a lado, ou festivais de cinema local. Se o Estado tardou em apoiar, a sociedade civil e os próprios artistas arregaçaram as mangas. E com a internet, os criadores das margens podem agora falar diretamente ao público, sem pedir permissão aos guardiões do centro.
Importa destacar também os intelectuais emergentes e ativistas do pensamento.
Nunca foi tão grande o número de angolanos a frequentar universidades (dentro e
fora do país), e isso traz à cena uma massa crítica disposta a questionar
narrativas consagradas. Jovens historiadores revisitam arquivos coloniais e
achados arqueológicos para reescrever a história pré-colonial angolana, dando
protagonismo aos reinos e figuras locais que os manuais quase esqueceram.
Sociólogos e antropólogos estudam problemas contemporâneos – desde as migrações
internas até o papel das igrejas – sem os filtros ideológicos de outrora. Por
sua vez, cronistas em jornais digitais e podcasters falam abertamente de
assuntos antes espinhosos: racismo entre angolanos, violência doméstica,
direitos LGBT, saúde mental numa sociedade traumatizada pelas guerras. Essas
novas vozes críticas muitas vezes chocam-se com incompreensão ou patrulha moral
dos mais velhos, mas persistem. E acabam por conquistar mentes nas gerações
mais novas, menos apegadas aos dogmas antigos. A prova de fogo será traduzir
esse fervilhar intelectual em mudanças tangíveis de paradigma – influenciar
políticas culturais, reformar currículos, provocar debates públicos amplos. Mas
o primeiro passo, que é falar alto e sem medo, já está em curso.
É admirável notar que grande parte dessas vozes insurgentes atua movida por
paixão e sentido de missão, quase nunca por incentivos materiais. Pelo contrário,
muitos enfrentam dificuldades financeiras e falta de infra-estrutura. A
produção de livros em Angola é cara e pouco difundida; os músicos muitas vezes
não têm editoras nem espaços adequados para concertos – “Angola é um mercado de
festas, não de concertos”, já criticou um rapper, aludindo à ausência de
circuitos profissionais de música alternativa. Ainda assim, a criatividade
teima em brotar nas fendas do asfalto esburacado da nossa realidade. Essas
vozes têm sido responsáveis, em boa medida, por manter viva a autenticidade
cultural angolana, impedindo que se resuma a um folclore domesticado para
consumo oficial. São elas que, tal como aquele miúdo do musseque que pinta
murais nas paredes descascadas, nos lembram que Angola não cabe numa moldura
única e que a beleza muitas vezes nasce das rachaduras.
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