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O estado não pode ser visto como instrumento de dominação ou ilegítimo - Rui Kandove

Quando mais de vinte cidadãos são mortos, estabelecimentos comerciais completamente vandalizados e a atuação das forças de segurança se revela desastrosa, seria de esperar uma resposta política à altura da gravidade dos factos. Passadas mais de 48 horas, o Chefe de Estado — titular do Poder Executivo — pronunciou-se publicamente, mas não houve qualquer responsabilização política. O maior sinal de sensibilidade diante dos acontecimentos partiu, ironicamente, da sociedade civil. Líderes religiosos e músicos — como Yanik Afroman, Cef e Nice Zulo — visitaram e garantiram apoio aos filhos da senhora Ana Mubila, morta pelas autoridades durante as manifestações da greve dos taxistas. Este gesto, vindo da esfera cultural, não é meramente solidário: trata-se de um ato simbólico de reparação e responsabilização pública. Como bem observa Pierre Rosanvallon (2006), em contextos de falência da legitimidade institucional, a autoridade moral tende a migrar para fora do Estado, sendo exercida por figuras públicas com maior credibilidade social.

As imagens circularam o mundo, e vozes do exterior levantaram-se em repúdio. Enquanto isso, internamente, crescia o desconforto social. Uma inquietação que se manifesta inclusive nos comportamentos mais quotidianos: o desrespeito de crianças às autoridades, por exemplo, é muitas vezes lido como sintoma de um mal-estar mais profundo — reflexo de uma crescente deslegitimação do poder e não apenas de uma crise de valores familiares.

A ausência de medidas corretivas — ou, ao menos, de gestos simbólicos que pudessem ser entendidos como sinais de mudança — tornou-se prática recorrente, sintoma de um sistema político que já não responde nem ao povo, nem à sua própria legalidade.

Este padrão repete-se em diferentes esferas. Em janeiro deste ano, foi noticiado que funcionários seniores da Administração Geral Tributária (AGT) lesaram o Estado angolano em mais de sete mil milhões de kwanzas. Apesar da gravidade da situação, o dirigente máximo da instituição não foi responsabilizado — nem administrativa, nem politicamente. A pergunta impõe-se: como é possível que tamanha falha institucional passe impune?

A resposta está na degradação do que o cientista político Guillermo O’Donnell denomina accountability horizontal — a capacidade das instituições do Estado se fiscalizarem mutuamente, sem depender apenas do voto popular. Para O’Donnell (1998), “a accountability horizontal é um dos pilares de qualquer democracia que pretenda evitar a concentração abusiva de poder e o colapso dos mecanismos de controlo institucional”. Quando esta capacidade falha, os sistemas de fiscalização tornam-se inócuos, e o Estado transforma-se num organismo autoprotetor. Em democracias disfuncionais, tal impunidade é sintoma de regressão autoritária.

Mas o problema da responsabilização em Angola não é apenas institucional. É também cultural e simbólico. Segundo Pierre Rosanvallon (2006), a legitimidade democrática moderna exige mais do que eleições regulares: exige também legitimidade reflexiva — a capacidade dos dirigentes de escutar, reconsiderar decisões e prestar contas ao público. Quando essa dimensão reflexiva desaparece, instala-se um clima de ressentimento social. As autoridades, ao refugiarem-se em pactos de proteção mútua, passam a ser vistas não como garantidoras da justiça, mas como instrumentos de dominação e imunidade.

Esse processo tem um impacto direto na coesão do contrato social. Dados do Afrobarometer (2022) revelam que a maioria dos cidadãos angolanos acredita que os líderes políticos raramente — ou nunca — são responsabilizados pelos seus atos. Apenas 18% dos inquiridos confiam que os líderes corruptos enfrentam consequências. Tal desconfiança alimenta o cinismo político, desmobiliza a cidadania ativa e fortalece redes clientelares que perpetuam a desigualdade social e o medo de se manifestar.

Como alerta a filósofa Nancy Fraser (2008), justiça política não se limita à redistribuição económica — exige também reconhecimento e representação justa. Quando o cidadão comum é abatido sem resposta, o corrupto é protegido e o dirigente falha sem consequências, o Estado não apenas fracassa na sua missão redistributiva, mas nega o valor e a dignidade dos seus próprios cidadãos. A falha da responsabilização é, assim, uma falha profunda de justiça institucional e moral.

É neste contexto que se impõe denunciar, com clareza e responsabilidade, que a autoridade em Angola está a falhar. Não se trata de ataques à estabilidade — como frequentemente alegam operadores do poder —, mas de uma exigência legítima por justiça, transparência e respeito pela vida. O silêncio político — expresso na ausência de respostas ou medidas — diante da dor popular mina os alicerces da autoridade e acende um sinal de alarme: instaura-se um sentimento crescente de ingovernabilidade. O governo está cada vez mais isolado. E um Estado isolado do seu povo é um Estado que se aproxima perigosamente da ilegitimidade.

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