A recente declaração da Polícia Nacional de Angola, tentando justificar a morte de cerca de 30 cidadãos durante protestos e pilhagens no rescaldo da greve de taxistas, é mais do que uma simples negação de culpa. É um retrato cru de um Estado que trocou a Constituição por um escudo de retórica barata, onde a vida humana vale menos que uma viatura incendiada.
A polícia diz que não houve ordem para matar, apenas "resposta
proporcional" a um "caos descontrolado". Pois bem, em Angola, a
proporcionalidade é uma ciência exata: se manifestas com fome, recebes gás
lacrimogéneo; se gritas por justiça, levas bastão; se corres porque levaste um
tiro, morres com outro nas costas. Tudo em nome da ordem pública.
Os dirigentes do MPLA construíram ao longo dos anos um sistema de defesa e
segurança mais devoto ao MPLA do que ao povo. O juramento que se faz nas
fileiras das forças armadas, polícias e segurança, já não é à bandeira
nacional, mas sim à figura de um partido político - MPLA que há décadas
confunde liderança com dominação. O cidadão angolano não é protegido; é
patrulhado. E quando protesta, é tratado como inimigo interno.
A narrativa oficial que João Manuel Gonçalves Lourenço encabeça, é uma aula
de cinismo institucional: "As mortes não foram intencionais", dizem
eles. Sim, claro, como quem tropeça acidentalmente no gatilho de uma AKM vinte
vezes seguidas. Morre-se por consequência, não por escolha, como se a culpa
fosse dos próprios mortos por estarem no caminho das balas.
A verdade que não se diz — mas se grita nas ruas de Kabinda, Wige, Luanda,
Malanje, Saurimo, Moxico Huambo, Benguela, Huíla, Kunene— é que o Estado perdeu
completamente a sensibilidade humana, se é que alguma vez a teve. O angolano
transformado em estatística de “elementos neutralizados” ou “agitadores
abatidos” nem sequer tem direito ao luto digno. Mas os comunicados oficiais
saem bem escritos. A ortografia da morte, em Angola, é perfeita.
As forças especiais (URP, PIR, SINSE) são treinadas para reprimir, não para
proteger. Protege-se o MPLA e seus endinheirados corruptos. O inimigo já não
está nas fronteiras, está nas praças, nos mercados, nos musseques. Está nos
jovens desempregados que pedem pão e recebem balas. Está nos taxistas que
pararam para exigir justiça no preço dos combustíveis e são arrastados por
viaturas da polícia. A ordem constitucional, aparentemente, só existe quando se
trata de proteger o luxo de uma minoria que governa como se fosse monarquia
hereditária.
O MPLA transformou Angola numa sátira cruel da sua própria luta de
libertação. Os Movimentos de Libertação (FNLA, MPLA e UNITA), Libertaram-nos do
colonialismo, sim, mas o MPLA aprisionou Angola numa nova tirania: a do
silêncio forçado, da obediência imposta e da justiça selectiva. Hoje, o país é
uma república de fachada, onde a Constituição serve mais para ser citada em
conferências do que aplicada nas ruas.
A hipocrisia institucionalizada é tamanha que um oficial da polícia pode
afirmar publicamente que "as mortes foram consequência dos actos
praticados pelos cidadãos", como se uma pedra atirada justificasse uma
rajada de balas. Se isso não é execução extra-judicial, o que é? Um espetáculo
pirotécnico?
E enquanto o povo enterra seus filhos e limpa o sangue das calçadas, os
dirigentes vivem entre muros, escoltados por homens armados pagos pelo próprio
povo. Os mesmos que morrem nas filas dos hospitais sem medicamentos, que
vagueiam entre os contentores à procura de sobras e que são acusados de
vandalismo por ousarem existir.
O país precisa urgentemente de uma transformação profunda. Não se trata
apenas de mudar os rostos nos gabinetes, mas de refundar a ideia de Estado.
Precisamos de forças de segurança verdadeiramente republicanas — que saibam que
servir não é o mesmo que submeter. Precisamos de dirigentes que olham para o
povo como um aliado dono da soberania popular nacional, e não uma ameaça. De
líderes que chorem por uma vida perdida, e não por uma eleição em risco.
Mas enquanto isso não acontece, continuaremos a viver nesta Angola de
fantasmas: onde quem manda finge governar, quem protege finge defender, e quem
é morto finge-se ser culpado.
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