“Uma instituição de saúde não é apenas um espaço físico onde se cura a doença, mas um organismo complexo que depende da qualidade da sua liderança e da eficácia dos seus processos” – Mintzberg (1979)_
A gestão hospitalar tem vindo a ganhar relevância global nas últimas
décadas, deixando de ser vista como mera função administrativa para assumir o
estatuto de ciência multidisciplinar que exige competências em planeamento
estratégico, liderança, gestão de pessoas, tecnologias e análise de dados. Esta
transformação é visível em sistemas de saúde robustos, que passaram a encarar
os hospitais como organizações complexas e não meras extensões do poder público
ou empresarial. Contudo, em países como Angola, onde a estrutura da saúde
pública permanece fortemente centralizada, politizada e desprovida de cultura
de gestão por resultados, esta evolução está ainda por acontecer.
Angola vive um momento crucial: ou investe na modernização da sua gestão
hospitalar ou continuará a assistir à degradação da qualidade dos serviços, ao
esvaziamento dos hospitais públicos e à crescente elitização do acesso à saúde.
Lições Internacionais: O que nos ensinam os modelos mais avançados?
Ao analisarmos os modelos de gestão hospitalar no mundo, deparamo-nos com
diferentes caminhos, mas todos orientados por um princípio comum: melhorar a
qualidade do cuidado com base em dados, processos bem definidos e
accountability.
No Reino Unido, o Serviço Nacional de Saúde (NHS) mantém-se como um dos
mais emblemáticos sistemas de saúde pública centralizada. Apesar das críticas à
rigidez burocrática, é um modelo baseado em metas de desempenho, fiscalização e
responsabilização dos gestores, o que garante uma prestação de serviços
minimamente padronizada e equitativa. Saltman e Figueras (1997) defendem que “a
governação estruturada é o eixo que permite equilibrar equidade, eficiência e
controlo”.
Nos Estados Unidos, o modelo privado baseado em competição de mercado criou
um sistema altamente tecnológico, porém excludente. Porter e Teisberg (2006),
ao proporem o conceito de “Value-Based Health Care”, defendem que “a reforma da
saúde deve girar em torno do valor entregue ao paciente, e não apenas na
rentabilidade das instituições”.
Modelos intermédios, como o brasileiro e o português, têm experimentado
formas híbridas de gestão, incorporando Organizações Sociais (OS) e Parcerias
Público-Privadas (PPP). Em ambos os casos, há evidências de que, quando bem
reguladas, essas formas de gestão promovem melhoria nos indicadores de
desempenho, satisfação dos utentes e eficiência na utilização de recursos (La
Forgia & Couttolenc, 2008).
O Caso Angolano: Centralização, Descontinuidade e Fragilidade Estrutural
O modelo angolano permanece ancorado numa lógica estatal centralizada e
fortemente hierarquizada, onde os hospitais funcionam como unidades
administrativas subordinadas aos gabinetes centrais do Ministério da Saúde ou
das Direcções Provinciais, muitas vezes com pouca autonomia e quase nenhuma
margem para inovação. O sistema padece de decisões unilaterais, nomeações
políticas e ausência de avaliação de desempenho institucional, perpetuando
práticas ineficazes.
Os gestores hospitalares são, na maioria, profissionais clínicos sem
formação formal em administração hospitalar, o que compromete seriamente a
capacidade de liderança estratégica. Como bem observa Drucker (1993), “um bom
médico pode não ser um bom gestor, pois a gestão exige outra racionalidade –
orientada por metas, pessoas e sistemas”.
Essa realidade é agravada por:
Falta de planeamento estratégico hospitalar;
Ausência de indicadores claros de desempenho (KPIs);
Carência de sistemas de informação robustos para registar, analisar e gerir
dados clínicos e operacionais;
Debilidade na cultura institucional de responsabilização e prestação de
contas.
Donabedian (1988) argumenta que “a qualidade do cuidado está intrinsecamente
ligada à qualidade da estrutura e da gestão institucional”. E no caso angolano,
a estrutura institucional encontra-se enfraquecida pela inércia organizacional
e por décadas de gestão improvisada.
*Sinais de Esperança e Oportunidades de Reforma*
Apesar dos entraves, há sinais que apontam para possibilidades de ruptura
positiva. Em Luanda e noutras capitais provinciais, surgem clínicas e hospitais
privados de excelência que demonstram capacidade de gestão empresarial
eficiente, embora acessíveis apenas a uma elite.
Por outro lado, hospitais confessionais e de iniciativa comunitária, como o
Hospital do Chiulo ou o Hospital do Cubal, geridos por missões religiosas,
provam que é possível garantir qualidade assistencial com poucos recursos,
desde que haja liderança comprometida, processos claros e gestão participativa.
Soma-se a isso:
Um crescimento tímido mas progressivo da digitalização dos serviços de
saúde;
A introdução de prontuários eletrónicos em algumas unidades piloto;*
Um movimento emergente de formação técnica e superior na área de gestão em
saúde;
Iniciativas isoladas de descentralização administrativa nas províncias.
Estas oportunidades precisam de ser capitalizadas de forma sistémica, com visão
nacional e liderança estratégica, sob pena de se tornarem meros ensaios
experimentais sem impacto real na reestruturação do sistema.
Propostas de Reforma: Para onde devemos caminhar?
A reforma da gestão hospitalar em Angola deve ser guiada por três eixos
centrais:
1. Autonomia com Responsabilidade
Criação de um estatuto jurídico-administrativo para hospitais públicos, que
lhes confira autonomia na gestão orçamental, recursos humanos e compras.
Implementação de contratos-programa com metas específicas, auditáveis e com
penalizações em caso de incumprimento.
Criação de conselhos administrativos plurais, incluindo representantes da sociedade civil, corpo clínico e utentes.
2. Profissionalização da Gestão
Formação contínua em gestão hospitalar, administração pública em saúde e
liderança institucional para todos os quadros dirigentes.
Criação de cursos técnicos e licenciaturas em gestão de serviços de saúde
nas universidades públicas e privadas.
Reformulação do modelo de nomeações para cargos de direcção, baseando-se em
concursos públicos com critérios técnicos e éticos.
3. Inovação e Tecnologia
Implantação de sistemas de informação hospitalar (HIS) que permitam
integração entre unidades, partilha de dados clínicos e produção de relatórios
de gestão em tempo real.
Estímulo à utilização de tecnologias emergentes como Inteligência
Artificial, Big Data e telemedicina para optimização de diagnósticos, triagens
e gestão de filas.
Criação de observatórios de desempenho hospitalar, promovendo a transparência e o benchmarking entre unidades de saúde.
Kaplan e Norton (1996) alertam: “o que não é medido, não é gerido” – sem métricas, não há progresso.
Conclusão: O Futuro da Saúde Começa com uma Gestão Melhor
Angola precisa, com urgência, de abandonar o paradigma assistencialista e
improvisado da gestão hospitalar e de abraçar um novo modelo baseado em
autonomia, profissionalismo e inovação. Um hospital não é apenas um espaço
físico com camas e seringas — é um centro de inteligência, cuidado e
estratégia, cuja eficácia depende da qualidade da sua gestão.
A reforma não será fácil, nem rápida. Exige vontade política, envolvimento
da sociedade civil, capacitação institucional e uma profunda mudança de
mentalidade. Mas é possível. A estagnação actual não é destino — é um ponto de
partida para uma nova arquitectura da saúde em Angola.
Como sublinha a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2010): “Os sistemas de
saúde não fracassam pela falta de recursos, mas pela ausência de boa gestão”. E
a boa gestão, em saúde, pode salvar milhões de vidas.
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