A ex-juíza-conselheira presidente do Tribunal de Contas (TdC) Exalgina Renée Vicente Olavo Gambôa já não vai a julgamento, tal como indicou, no ano passado, o procurador-geral da República (PGR), Hélder Pitta Gróz. Apesar de não ter sido objecto de divulgação na imprensa, o processo do qual era arguida foi, afinal, arquivado em Junho de 2024, por nulidade e incompetência da instância judicial que mandou instruir a auditoria à gestão da magistrada.
A 24 de Junho de 2024, à saída de um encontro com uma delegação do Tribunal
Administrativo da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, na
sigla inglesa), que decorreu em Luanda, Hélder Pitta Gróz confirmou à imprensa
que o processo contra a ex-juíza-conselheira presidente do TdC estava prestes a
dar entrada no tribunal.
“Estamos a trabalhar para que o processo siga para o tribunal. Ainda não foi, mas está tudo pronto para isso”, garantiu, na ocasião, Pitta Gróz, no final do encontro com a referida delegação.
Hoje, quando compulsado o despacho da anulação da auditoria e arquivamento
do processo, um dado intrigante salta à vista: quatro dias depois de o PGR
prestar essas declarações à imprensa, o juiz-relator do caso decidiu, a 28 de
Junho de 2024, mandar arquivar o mesmo, e, na semana seguinte — mais
precisamente no dia 2 de Julho de 2024 —, a juíza Exalgina Gambôa foi
notificada do referido despacho.
Porém, para uma melhor compreensão dos factos, convinha revisitar alguns
dos acontecimentos que marcaram o processo de Exalgina Gambôa, até ali suspeita
da prática dos crimes de corrupção, extorsão e peculato.
Os factos
Em 2023, na sequência das várias denúncias feitas pelo Maka Angola e pelo
Africa Monitor Intelligence, relativas a suspeitas de irregularidades na gestão
do Cofre Privativo do Tribunal de Contas (CPTC), foi instaurada uma auditoria
cujos trâmites correram junto da 1.ª Secção da 2.ª Câmara daquela instância
judicial superior.
A auditoria teve como objectivo verificar a gestão e o sistema de controlo
financeiro, contabilístico, patrimonial e contratual, com foco no princípio da
legalidade e regularidade da arrecadação das receitas, assim como na realização
das despesas executadas pelos membros do Conselho Administrativo do CPTC — que
tinha como assinantes das contas bancárias Utima Madalena Pereira dos Santos
(na qualidade de chefe de Divisão de Administração e Finanças) e Edna Chaves
Rodrigues (então directora adjunta do gabinete de Exalgina Gambôa).
A 2 de Maio de 2024, o juiz-conselheiro do TdC Manuel da Cruz Neto foi
designado novo relator do Processo n.º 007/AUD/FS/2023-A, em virtude da entrada
em vigor da Resolução n.° 2/23, de 22 de Maio, que aprova a Alteração do
Regulamento da 2.ª Câmara, a qual, dentre outras alterações, cria a 1.ª Sessão,
com competências para instrução dos processos.
A 28 de Junho de 2024, o juiz Manuel da Cruz Neto mandou notificar a antiga
juíza-conselheira presidente do TdC Exalgina Gambôa, através do seu
representante legal João André Pedro, para que este tomasse conhecimento do
despacho proferido nos autos, documento a que o !STO É NOTÍCIA teve acesso
exclusivo.
TdC sem órgão de controlo interno
Apesar das inúmeras irregularidades apuradas e feitas constar do documento
que escrutinou a gestão de Exalgina Gambôa, o juiz-relator Manuel da Cruz Neto
decidiu “declarar nulo o Relato de Auditoria e consequentemente arquivar o
processo, por falta de jurisdição e competência do Tribunal de Contas, conforme
estatuído na alínea f), n.° 1 e 3 do artigo 10.º da Lei n.º 13/10, de 9 de
Julho [Lei Orgânica e do Processo do Tribunal de Contas]”.
De acordo com despacho, acontece que o n.º 2 do artigo 19.º, da Resolução
n.° 3/21, de 25 de Maio, que aprova o Regulamento do CPTC, com a epígrafe
‘Contas do Exercício’, estabelece que as contas do Cofre Privativo do Tribunal
de Contas são submetidas trimestralmente à auditoria interna, para validação.
No entanto, na estrutura orgânica do Tribunal de Contas não existe este órgão
de controlo interno para validação das respectivas contas.
E mais: segundo o despacho do juiz-relator Manuel da Cruz Neto, a auditoria
acima referida não deve ser tratada como uma espécie processual prevista no
artigo 52.° da LOPTC (Lei Orgânica e do Processo do Tribunal de Contas), uma
vez que o “controlo neste nível limita-se a reportar ao Conselho Administrativo
do CPTC informações sobre o desempenho, possíveis desvios e comparações, de
modo que esses sejam corrigidos e estejam em condições de serem remetidos ao
órgão competente para o controlo externo”.
Falta de competência
Por outro lado, o processo da ex-juíza-presidente Exalgina Gambôa esbarrou
igualmente em questões que dizem respeito à “jurisdição e competência da 2.ª
Câmara relativamente à fiscalização exercida pelo Tribunal de Contas ao CPTC”.
“À 2.ª Câmara do Tribunal de Contas compete, dentre várias matérias, julgar
as contas dos serviços e dos organismos sujeitos à jurisdição do Tribunal.
Entretanto, resulta da alínea f), n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 13/10, de 9
de Julho, que estão sujeitos à jurisdição do Tribunal de Contas os Cofres de
quaisquer natureza, de todos os organismos e serviços públicos, excepto o Cofre
do Tribunal de Contas”, lê-se no argumento do juiz-relator.
Na verdade, o n.° 3 do artigo 10.º, da Lei Orgânica e do Processo do
Tribunal de Contas, estabelece que as contas do Tribunal de Contas, incluindo a
do seu Cofre, são objecto de auditoria independente designada pela Assembleia
Nacional com base em concurso público.
“Nota-se que o legislador limitou o exercício de fiscalização sucessiva do
Tribunal de Contas ao CPTC, nas normas supra referidas, quando elenca as
entidades sujeitas à jurisdição do Tribunal de Contas e remete o referido
exercício de controlo para outro órgão de soberania, no caso a Assembleia
Nacional, promovendo, deste modo, o princípio da transparência e da
imparcialidade”, refere Manuel da Cruz Neto, acrescentando:
“Está, por isso, evidente que o Tribunal de Contas carece aqui de
competência para auditar as contas do Cofre; ou seja, estamos diante de uma
excepção dilatória — a incompetência absoluta do Tribunal —, de conhecimento
oficioso e a todo o tempo (cfr. artigos 100.° a 105.° e os artigos 493.° e
495.º, todos do CPC).”
Diante do exposto, o juiz Manuel da Cruz Neto, ao abrigo dos preceitos
legais, julgou a acção “improcedente” e, em consequência, mandou anular o
Relato de Auditoria, bem como arquivar o processo.
A origem do processo
A ex-juíza-presidente do tdC renunciou ao cargo em Março de 2024, isto é,
dois meses depois de ser convidada a sair pelo Presidente João Lourenço, que
alegou perda de confiança política e devido à instabilidade que o caso estava a
causar na justiça angolana.
Exalgina Gambôa e Hailé da Cruz, seu filho, foram constituídos arguidos, em
Fevereiro de 2023, por crimes de extorsão, corrupção e peculato, num processo
aberto pela PGR.
0 Comentários