Por duas vezes, em locais solenes (Assembleia-Geral da ONU e Assembleia Nacional de Angola) e de forma incisiva, o presidente da República, João Lourenço, vergastou as nações estrangeiras por não cooperarem devidamente com Angola na recuperação de activos provenientes da corrupção. João Lourenço apresentou como excepção a Inglaterra, mas, implicitamente, incluiu, provavelmente, na sua crítica países como Portugal, Suíça, Espanha, Emirados Árabes Unidos e Singapura, entre outros.
É verdade, que a Inglaterra, findo o seu sonho imperial,
vê-se agora como uma referência para o mundo em termos de boa aplicação da lei,
com um poder judicial independente, íntegro e competente, e, tenta libertar-se
da fama de ter sido um paraíso financeiro para os desmandos dos oligarcas
russos. Os outros países não têm as ambições pós-imperiais de Inglaterra, nem
uma imagem global a corrigir e, por isso, preocupam-se, sobretudo, em não
perder activos relevantes para a sua economia. O caso português é singular,
pois não hostiliza Angola, mas também não avança, na atitude pantanosa habitual
do seu sistema judicial. Diz que faz, mas não faz, refugiando-se em formalismos
exagerados.
No entanto, esta é apenas uma das faces da moeda.
A exigência do presidente da República às justiças
internacionais tem como condição a credibilidade da justiça angolana. Ninguém
vai entregar nada a Angola se a sua justiça não for credível e não der
garantias de cumprimento das normas fundamentais aceites de direito penal e dos
tratados internacionais.
Quer isto dizer que o sucesso da recuperação de activos
no estrangeiro começa em casa. É Angola que tem de se apresentar ao mundo com
uma justiça para além de qualquer suspeita. E esse é um problema real, pois a
justiça angolana tem perdido variadas oportunidades de se afirmar como
credível, independente e imparcial. E cada oportunidade perdida tem sido
amplificada e utilizada em tribunais estrangeiros para desqualificar a justiça
angolana.
Por exemplo, o Tribunal Constitucional espanhol decidiu
anular a extradição para Angola de Carlos Panzo, antigo secretário económico do
presidente da República, devido a eventuais crimes de corrupção. O tribunal
espanhol fundamentou a sua decisão da seguinte forma: “No parece posible
entender que en el órgano competente para formular las demandas de extradición
de la República de Angola se cumplan los estándares de independencia del poder
ejecutivo a que hemos hecho referencia anteriormente.” [Não parece possível
compreender que o órgão competente para formular os pedidos de extradição da
República de Angola cumpra os padrões de independência do poder executivo a que
nos referimos anteriormente.]
Igualmente, na Suíça, os advogados de Carlos São Vicente
deram nota de que um tribunal suíço decretou a suspensão da cooperação com as
autoridades judiciais angolanas, devido à falta de imparcialidade no processo
judicial contra o seu cliente.
Torna-se evidente que existe um problema de percepção
internacional que tem de ser confrontado.
À anunciada iniciativa política e legal de combate à
corrupção não tem correspondido uma actuação sistemática, imparcial e
determinada da Procuradoria-Geral da República (PGR). E, isso, obviamente,
levanta dúvidas e dá argumentos aos tribunais estrangeiros para não confiarem nas
autoridades judiciárias angolanas.
Os casos inexplicados que descredibilizam sucedem-se.
Além de alguns mencionados neste portal recentemente, é fácil fazer uma lista
não exaustiva de outros casos:
Surgiu, há uns meses, um acordo entre o Departamento de Justiça
norte-americano e a empresa de consultoria Boston Consulting Group (BCG)
[filial de Portugal] referente a actos de corrupção em Angola. O acordo foi
público e divulgado, os factos bastante cristalinos, envolvendo o Banco
Nacional de Angola e o Ministério da Economia durante a década de 2010.
Aparentemente, a PGR portuguesa abriu um inquérito criminal para apurar
responsáveis singulares. Em Angola, silêncio da PGR.
Em tempos, a propósito de eventuais suspeitas sobre o presidente do Tribunal
Supremo, Joel Leonardo, o presidente da República disse, e citamos: “Alguma
suspeição paira também no Tribunal Supremo estando o Ministério Público a
trabalhar no apuramento da verdade dos factos.” E, nessa sequência, pediu que
se aguardasse pela conclusão do inquérito e não se retirassem conclusões
precipitadas. Isto ocorreu em Março de 2023. Também até hoje não houve
conclusão de eventual inquérito. Nem acusação, nem arquivamento. Mais um
silêncio.
Não vale a pena falar dos processos em relação a Isabel dos Santos. Em primeiro
lugar, porque em Angola há apenas há um processo com acusação deduzida, o qual
não saiu dessa fase. Tanto quanto se percebe, nem em instrução contraditória
entrou. Lembremo-nos de que em Janeiro deste ano o procurador-geral-adjunto da
República, Pedro Mendes de Carvalho, anunciou que o julgamento poderia começar
em Março de 2024. O tempo passou e o que temos, como habitualmente, é silêncio.
No princípio de 2022, foi noticiado que a PGR de Angola abrira um inquérito à
compra de um edifício pelo ministro dos Transportes a um amigo, resultado de
uma denúncia feita pelo responsável do Maka Angola. Mais tarde, insinuou que
poderia ser arquivada. Possivelmente até foi, mas não há conhecimento público
de nada.
Em Julho deste ano, o procurador-geral afirmou, a propósito de uma eventual
acusação a Exalgina Gamboa, antiga presidente do Tribunal de Contas: “Estamos a
trabalhar para que o processo [por tentativa de extorsão e corrupção] siga para
o tribunal, ainda não foi, mas está tudo pronto para isso.” De novo, não há
notícia de que o processo tenha seguido os seus trâmites.
E há, agora, o caso Eduarda Rodrigues. A sua exoneração não foi um acto normal
e previsível. Logo após a mesma, surgiram advogados responsáveis a contar
histórias sobre eventuais actos de tentativa de extorsão (Carlos São Vicente),
abuso de poder e coacção (generais Kopelipa e Dino, Manuel Rabelais) com
inúmeros factos detalhados pelo advogado João Gourgel em recente entrevista. Os
factos podem ter acontecido como os advogados contam, ou podem ter explicações
diferentes. O que não se entende, mais uma vez, é o silêncio da PGR. É evidente
que tem de ser aberto um inquérito a estas alegações. A actuação de Eduarda
Rodrigues à frente do SENRA tem de ser investigada. O resultado desse inquérito
não é predeterminado. Repete-se, qualquer investigação pode terminar em
acusação, arquivamento/absolvição. O que não pode acontecer é o nada. O
silêncio.
São precisamente estes silêncios, estas omissões, que descredibilizam a justiça
angolana, que a tornam vulnerável a todo o tipo de acusações, que lhe retiram
autoridade internacional.
É por isso que, tendo o presidente da República razão, o
primeiro passo para o sucesso das investidas internacionais é a arrumação da
casa judiciária. E o presidente Lourenço tem poderes para arrumar a casa.
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