Não tinha nenhuma intenção de refletir-se sobre as eleições gerais da África do Sul, que resultaram agora na derrota decisiva do Congresso Nacional Africano (ANC), que ficou apenas com 40% do pleito eleitoral. Como sabemos, ANC está no poder desde 1994, no rescaldo do colapso do regime racista da minoria branca. Desde então ANC exerceu a hegemonia política, com poderes absolutos, sustentados pela maioria qualificada. Decidi escrever este artigo analítico devido alguns aspectos pertinentes que chamaram a minha atenção e que achei necessário partilhar as minhas ideias com a opinião pública. Os aspectos em causa são os seguintes:
O nível elevado do patriotismo e da cultura democrática da liderança do ANC em aceitar pacificamente e sem rodeios a derrota eleitoral; a modéstia e o civismo do partido governante em reconhecer o mérito de outros partidos e felicitá-los pelo seu engajamento ao processo eleitoral; a honestidade do ANC de reconhecer os seus erros; de sujeitar-se à soberania popular; de respeitar à vontade dos eleitores; de aceitar pacificamente os resultados eleitorais; e de tomar a iniciativa de negociar com todos os partidos concorrentes os termos da formação do governo de coligação.
Nesta senda, embora a distância, mas constatei igualmente a transparência e a imparcialidade da Comissão Eleitoral Independente (IEC) que lidou abertamente (sem truques & subterfúgios) com todos os partidos políticos e acolheu todas as reclamações, irregularidades, objeções e dúvidas sobre o escrutínio, prestando esclarecimentos. O que me impressionou bastante é o grau elevado da liberdade de imprensa dos órgãos de comunicação social públicos da África do Sul. Em certas medidas, foram muito críticos ao partido no poder, ao qual o Presidente Cyril Ramaphosa fez menção no seu discurso formal na cerimónia solene da apresentação dos resultados finais.
De facto, foi muito impressionante ver toda a elite da África do Sul, de todos os partidos políticos, da sociedade civil e dos órgãos do Estado, sentados na mesma sala, lado a lado, a acompanhar atentamente a apresentação dos resultados finais das eleições gerais, provinciais e regionais. Foi um ambiente sereno, emocionante e civilizado, cheio de civismo, de patriotismo e de fraternidade, sem infantaria, sem cavalaria, sem aviação e sem carros de combate nas ruas e nos bairros para reprimir a população local.
Aliás, um dirigente do ANC dizia que, cita: “quem que não aceitar a vontade do povo, expressa nas urnas, não é um democrata. Pois, quem é democrata deve pugnar pela vitória e deve igualmente aceitar a derrota, quando isso acontecer, num processo eleitoral livre, justo e transparente.” Fim de citação. Esta cultura democrática, amplamente manifestada, não se verifica no seio do Partido MPLA, que não aceita a derrota, e que faz tudo para inverter os resultados eleitorais a fim de manter-se no poder – mesmo contra a vontade dos eleitores. Aliás, o MPLA pensa que é o «dono» do país. Como diz o seu slogan: “o MPLA é o Povo e o Povo é o MPLA.” Este Partido não reconhece o Povo, que é a fonte do Poder Público, que encarna a Soberania do Estado, ao qual devem obediência todos os Partidos Políticos.
Olhando para o outro lado da moeda, do mesmo processo eleitoral, eu tive a
percepção de que, apesar da lisura das eleições sul-africanas, houve qualquer
coisa oculta que esteja por detrás da flexibilidade e da abertura do ANC de
aceitar prontamente os resultados eleitorais. Nas afirmações do Jacob Zuma, ele
alega que, os votos do seu partido (MK) foram roubados e distribuídos aos
outros concorrentes, sobretudo ao ANC, que sofreu a derrota retumbante. Nesta
óptica, o Secretário-Geral do ANC afirmava que, cita:
“Todas as sondagens feitas durante este período indicavam que o ANC havia de
obter menos de 30%. Nesta base, tivemos que redobrar os nossos esforços e
afinar bem os mecanismos. Este esforço enorme nos permitiu subir a nossa fatia
até aos 40 porcentos.” Fim de citação.
Feita uma análise profunda, pode chegar a conclusão de que, a argumentação do Jacob Zuma (do roubo dos seus votos) deve ter uma lógica, embora requeira ter uma base material sustentado. Pois que, a lógica reside no facto de que, para manter-se no poder e ser capaz de formar um governo de coligação sob sua liderança, o ANC precisava não da maioria absoluta, mas sim, de uma maioria que esteja acima de todos os outros partidos concorrentes. Neste caso, era necessário retirar (roubar) votos de alguns partidos e distribui-los de tal sorte que, um Partido (neste caso, ANC) tenha mais votos que os outros partidos concorrentes.
Vejamos que, ao abrigo da lei, o Conselho Eleitoral Independente da África do Sul restava-lhe três dias úteis para apresentar os resultados finais. Então, porque apressou-se em fazê-lo, já no dia seguinte, sem analisar minuciosamente às reclamações dos partidos políticos? No caso de Angola, esta fórmula foi usada nas eleições gerais de 2022, na qual verificaram-se desvios avultados de votos da UNITA- FPU em benefício do MPLA, para constituir 51%, isto é, a maioria absoluta. Por isso, o Conselho Nacional Eleitoral e o Tribunal Constitucional rejeitaram categoricamente proceder-se à apresentação e à verificação das Actas Síntese, de acordo com as exigências sistemáticas da UNITA, sustentadas por dados materiais.
Se nos recordarmos bem, houve o desdobramento em peso da infantaria, da cavalaria e da polícia de intervenção rápida, munidos de carros de combate e de armas pesadas, ocupando as ruas e os bairros, com fim de reprimir a população local. É o paradoxo. Porque, quem venceu o pleito eleitoral não precisa de fazer tudo isso. Apenas coloca todas as cartas na mesa. Esta cultura de violência e de prepotência caracteriza o regime angolano desde o Acordo de Alvor (assinado no dia 15 de Janeiro de 1975, em Portugal) e que persiste até hoje.
Para não ser vítima de mal interpretação, com esta análise não quero dizer que as eleições sul-africanas foram fraudulentas. Contudo, apenas para chamar atenção ao facto de que, num processo eleitoral dever existir a lisura e a transparência, colocar todas as cartas na mesa, com fim de dissipar todas as dúvidas.
Em síntese, a situação actual da África do Sul é muito delicada e inspira
muitos cuidados. Porque, além da crise económica profunda e da corrupção
sistémica no seio do ANC, há um problema da dispersão de votos em diversos
partidos políticos (dissidentes do ANC), que vai exigir muito tacto, muita
flexibilidade e a cultura democrática para estar a altura de fazer face aos grandes
desafios de um Governo de Coligação e de um Parlamento competitivo.
Na minha perspectiva, será bastante difícil, a um partido em declínio, como
ANC, fazer face aos grandes desafios da concorrência política e da partilha do
poder dentro de uma coligação, composta por seus adversários. O processo da
renovação, da restruturação, da revitalização e do combate à corrupção dentro
do partido constitui o calcanhar de Aquiles do ANC. Repare que, este processo
de renovação do ANC será feito num clima de pressão enorme ao nível interno do
partido, ao nível do governo de coligação e ao nível do Parlamento.
Nesta problemática, não se deve descurar o «factor-Zuma», cuja influência no país é enorme e crescente. Em menos de oito meses da fundação do seu partido (MK) ele ganhou 58 assentos no Parlamento, como terceira força política do país, deixando atrás o Partido (EFF) do Július Malema, com apenas 39 assentos no Parlamento. Nesta senda, importa notar que Jacob Zuma é Zulu, da etnia maioritária da África do Sul, que pertence ao povo Nguni, que engloba as etnias Xhosa, Suazi, Ndembele, Sozos, Venda e Tsonga – espalhados pelo todo o país, até aos países vizinhos da Africa do Sul.
É neste contexto global que devemos avaliar o potencial político e sociocultural do Jacob Zuma. Não obstante os diversos processos de corrupção que correm os trâmites legais junto do Tribunal Supremo da África do Sul. Todavia, como nacionalista e como antigo Presidente do ANC e da República da África do Sul, com uma experiencia enorme, Jacob Zuma vai aproveitar-se da sua influência no ANC, sobretudo no seio dos antigos combatentes e veteranos da pátria (UmKhonto We Sizwe) para ampliar a sua base social de apoio, e deste modo, enfraquecer a liderança do Cyril Ramaphosa. Pois, o Cyril Ramaphosa é o responsável principal da corrupção galopante e do descalabro eleitoral do seu Partido. Portanto, a sua posição actual dentro da superestrutura do Estado e do Partido é instável.
Para terminar, no contexto da geopolítica mundial a África do Sul faz parte dos BRICS, está alinhada com a Rússia, China, Brasil e India. Neste momento, em relação a guerra entre Israel e Palestina, África do Sul é a proponente do «Processo de Genocídio» contra o Estado de Israel. Este protagonismo da África do Sul, sob a liderança do Cyril Ramaphosa, tem estado a irritar os Estados Unidos da América e algumas Potências Europeias.
Logo, a fissura dentro do ANC e as rivalidades entre Jacob Zuma e a liderança do Cyril Ramaphosa constitui uma porta aberta que pode ser aproveitada pelos Estados Unidos da América para vingar-se contra o Cyril Ramaphosa que lidera o Processo de Genocídio contra Israel junto do Tribunal Internacional de Justiça. Aliás, o próprio Jacob Zuma já fez alusão ao aspecto da geopolítica mundial e das alianças estratégicas. Enfim, Jacob Zuma, como um político astuto e populista, tem uma estratégia muito subtil que consiste no seguinte: buscar as alianças externas; alargar a sua base social de apoio; isolar o Cyril Ramaphosa; ganhar mais adeptos do ANC; pressionar o Poder Judicial; penetrar os seus sustentáculos noutras forças políticas no Parlamento; e reforçar o seu protagonismo na arena política do país.
Diante este panorama, toda a atenção está virada ao Poder Judicial que é a «Alma» do Estado Sul-africano, devida a sua legitimidade e credibilidade, que é o «Epicentro» do Poder Estatal, que sustenta o Estado de Direito e Democracia e que estabelece o «Equilíbrio» entre os Órgãos de Soberania do Estado. Ali reside a virtude das Instituições Democráticas Sul-africanas, a única «Panaceia» que é capaz de salvaguardar a estabilidade sociopolítica da África do Sul na conjuntura actual da geopolítica mundial.
O empenho da Equipa (mulheres e homens) da África do Sul junto do Tribunal
Internacional de Justiça tem sido notável e espetacular. Uma Equipa eminente,
compacta e multirracial, composta por Juízes e Advogados de alto nível: negros,
brancos, indianos e mestiços. É o grande orgulho da África. Com este Processo
de Genocídio, que tem apoio de mais de 149 Estados Membros das Nações Unidas,
isso coloca a África do Sul numa posição vantajosa e confortável junto da
Comunidade Internacional.
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