Durante a quadra festiva das comemorações alusivas aos 50 anos do 25 de Abril de 1974, numa sentada com os jornalistas estrangeiros, em Lisboa, o Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que, Portugal deve assumir a sua responsabilidade dos crimes cometidos em África durante a escravatura e o colonialismo, pelo que deve pedir desculpas e reparar os danos infligidos aos povos africanos das antigas colónias.
Este pronunciamento pragmático provocou a polémica e o alvoroço em
Portugal, e sobretudo, no seio da classe política. Este assunto é bastante
delicado, complexo e controverso. Porque o tráfico negreiro e o colonialismo
deixou feridas muito profundas e incuráveis aos povos da descendência africana
que continuam sujeitados à humilhação e à discriminação racial, em toda parte
do mundo. Além disso, se ter em consideração a dimensão, o alcance e a
gravidade dos crimes da escravatura e do colonialismo, Portugal não tem
recursos nenhuns para reparar os danos causados.
Por isso, acho que, o Presidente de Portugal não somente teve coragem, mas sim, mostrou o sentido forte de humanidade, de pragmatismo e do espirito de apaziguamento. Porque de facto, existe o tabu em torno da escravatura e do sistema colonial português. Este pronunciamento do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa permitiu destapar o véu sobre a realidade portuguesa e do preconceito colonial, que ainda está bem implantado nas mentes de uma boa parte dos portugueses, que defendem a «teoria civilizadora» dos povos colonizados da África. A reação espontânea e unanime contra o pronunciamento do Presidente Português revela que Portugal continua com a mesma mentalidade da época colonial e do tráfico de escravos transatlântico.
Neste âmbito, dados históricos mostram-nos os seguintes factos: Portugal foi o último a ser forçado pela Grã-Bretanha em abolir a escravatura e cessar o tráfico negreiro transatlântico. Portugal foi o último a deixar as colónias através da luta armada que culminou na Revolução de Capitães de 25 de Abril de 1974. Portugal foi a única potência colonial europeia que anexou as suas colónias. Portugal foi o único que estabeleceu nas suas colónias ultramares o sistema racial sistémico, estruturado, legislado e hierarquizado. Com isso não significa que nas outras colónias europeias não existia o racismo. Sim, existia. Somente que, o racismo português foi formal e institucionalizado, semelhante ao Apartheid da África do Sul. Neste respeito, de acordo com Joseph Ki-Zerbo, cita: «Os portugueses, aqui como em outros lados, na falta de mulheres brancas portuguesas, encontravam na mestiçagem uma “consolação fisiológica,” antes de nela virem a descobrir mais tarde um elemento de propaganda». Fim de citação.
Nesta senda, Portugal foi a única potência europeia que negou aos povos nativos africanos a «cidadania» dentro dos seus territórios, no contexto do sistema da discriminação racial entre os brancos da metrópole; os brancos nascidos nas colónias; os mestiços; os africanos assimilados; e os africanos indígenas. Os indígenas, na hierarquização do sistema racial português, eram tidos como sub-humanos, apátridas, vendados o acesso aos direitos humanos. Haviam barreiras rígidas que separavam as comunidades acima referidas em ghettos. Em certos bairros das cidades, habitados por brancos, o acesso dos pretos era restringido e muitos deles foram mortos a tiros. Era incrível!
Por isso, fiquei bastante escandalizado e indignado ver nesta época
contemporânea da civilização universal dirigentes portugueses a orgulharem-se
publicamente pelo sistema colonial e esclavagista em África e no Brasil. Esses
pronunciamentos aconteceram na presença dos líderes africanos, das antigas
colónias, convidados pelo Estado Português, cujos povos combateram o
colonialismo português e contribuíram decisivamente à Revolução Popular de 25
de Abril de 1974.
Enquanto, como sabemos, de entre todas potências europeias, Portugal foi o maior traficante de escravos transatlânticos, e foi um negócio lucrativo. Dados históricos revelam que, mais de 12 milhões africanos foram transportados por navios europeus às Américas, dos quais mais de 6 milhões de escravos saíram de Angola. Nesta referência, de acordo com o historiador africano, Joseph Ki-Zerbo, cita: “A escravatura foi a grande indústria de Angola e Luanda foi o maior Porto Negreiro da África Negra, expedindo mais de trinta mil escravos por ano, sobretudo para o Brasil. “Fim de citação.
Como afirmei atrás, o meu raciocínio não vai no sentido da reparação de danos
causados, mas sim, na defesa intransigente do princípio sagrado da
«reciprocidade» que implica o «direito de igualdade» e do «respeito mútuo»
entre Portugal e os Estados Africanos, antigas colónias de Portugal, que foram
vítimas da escravatura, do colonialismo, do racismo e da superioridade racial.
A lei da reciprocidade é bíblico, que encontramos no Lucas 6:31, que consagra o
seguinte: «Como quereis que os
homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles».
Em função disso, Portugal não pode manter a mesma mentalidade do tempo colonial, esperando que os povos das antigas colónias submetam-se à mesma condição de inferioridade e de opressão. Sabemos que, Portugal precisa das suas antigas colónias. Ao passo que, os Estados Africanos precisam igualmente de manter e estreitar as relações de cooperação bilateral e multilateral com Portugal a nível da CPLP, dos PALOP e da União Europeia, como Estados Soberanos. Neste âmbito, em muitos aspectos, Portugal é que precisa mais das suas antigas colónias do que o inverso.
Lembro-me que, em 1879, através do relatório do Silva Porto sobre o interior (onde encontrou-se com David Livingstone) da África, o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João de Andrade Corvo, alertava que, cita: «É só com as suas colónias que Portugal será capaz de ocupar o lugar que merece no concerto das nações». Anteriormente, na mesma senda, em 1765, o Governador de Angola, Francisco de Sousa Coutinho, afirmava que, cita: «A prosperidade de Portugal assentava sobre o Brasil, e que, a prosperidade do Brasil assentava sobre Angola». Fim de citação.
Note-se que, essa realidade histórica, da dependência de Portugal das suas colónias, não ficou alterada de modo nenhum. Até, em muitos aspectos, essa dependência económica está mais acentuada hoje do que no passado. O peso de Portugal na União Europeia deriva das suas antigas colónias. Isso aplica-se igualmente à língua portuguesa que está em pleno crescimento em termos demográficos.
Em conclusão, todos sabemos que tanto a escravatura quanto o colonialismo são
fenómenos universais que tiveram lugar em todas as Nações do Mundo. Somente
que, existe a especificidade em cada um deles em termos da dimensão, do alcance
e do contexto em que foram desenvolvidos. Pois, cada sistema político, embora
seja da mesma doutrina, mas a «singularidade» consiste no «modus operandi». Ali
reside a «essência» desta matéria.
Como foi visto atrás a escravatura e o colonialismo português tiveram um
carácter próprio e distinto de outras potências europeias. Em todos os sistemas
coloniais e esclavagistas foram marcadas pelo racismo. Só que, Portugal
estruturou e institucionalizou o racismo através do sistema da assimilação e do
estatuto do Indigenato que estratificaram e classificaram as sociedades colonizadas
em ghettos raciais, regidas por leis rígidas de separação, de discriminação e
de exploração.
Importa salientar que, o colonialismo e a escravatura portuguesa foram as mais
severas e cruéis. O Brasil foi o pior. Na abolição da escravatura, por exemplo,
enquanto aproximavam os patrulheiros da marinha britânica, os traficantes
portugueses afundavam os escravos acorrentados em baixo do oceano atlântico.
Centenas de milhares de escravos africanos pereceram no oceano atlântico antes
de chegar à costa marítima do Brasil. Como constatamos atrás, Portugal somente
cessou a escravatura e o colonialismo através da pressão externa e da luta
armada dos povos colonizados. Mesmo agora, nas circunstâncias actuais do mundo
civilizado, é preciso exercer muita pressão sobre Lisboa para força-lo a
reconhecer os seus crimes da escravatura e do colonialismo.
Infelizmente, a mentalidade portuguesa não evoluiu suficientemente. Por isso, não percebeu bem a essência da mensagem do seu Presidente que visava especificamente apaziguar os ânimos e emitir um sinal evidente de reconciliação com os povos africanos, cujos líderes foram convidados e estavam presentes em Lisboa para comemorar em conjunto o 25 de Abril de 1974. Nem sequer tiveram a «sensibilidade humana» da presença dos dirigentes africanos e das personalidades estrangeiras que estiveram presentes na Assembleia da República.
Acredito que, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, um militar que combateu nas colónias, está bem ciente da realidade africana onde ele tem sido recebido com alegria e com muito carinho. Portanto, ele sabe que Portugal não tem recursos nenhuns para reparar os danos hediondos que foram perpetrados em África e no Brasil. O essencial, neste contexto, que ele pretende vincar, é a vontade política de reconhecer os factos históricos e entabular o diálogo, alcançar o consenso e reforçar as relações de amizade e de fraternidade entre os nossos povos.
É preciso olhar ao cenário internacional e àquilo que passa nas antigas
colónias francesas, na Zona do Sahel. Veja que, a França ergueu em África o
sistema paternalista, clientelista e mercantilista sobre os quais assentava o
neocolonialismo francês. Como sabemos, tudo isso está a desmoronar-se, perdendo
tudo, em termos geopolítico, geoeconómico e geoestratégico. Na mesma senda, em
Angola e em Moçambique temos quase o sistema análogo. Contudo, esses muros
clientelistas erguidos pelo Portugal, já estão em baixo do sismo.
Creio que, nisso reside a visão de longo alcance do Presidente Marcelo Rebelo
de Sousa de estender a mão de reconciliação aos Povos Africanos, e que deve
assentar no espirito de fraternidade, de igualdade, de reciprocidade e de
perdão.
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