Vidas como do Justino Handanga não se choram; celebram-se. No momento que vi a notícia do seu passamento para a Outra Dimensão, partilho este artigo que acabei publicando no Semanário Angolense. Recapitulo-o na íntegra, pois retrata o profundo impacto que a sua música tem sobre as pessoas... estou feliz que o tenha escrito com ele ainda em vida. Aí vai:
Casamento do Plim. A festa estava animada. De repente bate um ritmo dengoso meio zouk, meio reggae, meio cha-cha-cha; carregado de melancolia, uma rítmica indefinívelmente atraente: Justino Handanga. Os pares se alinham e avançam para o meio da pista, onde começam a dançar transmitindo ao ambiente um quê de ritual religioso.
Reparo numa senhora de meia idade, beleza digna nos seus trajes de moda africana – aquela que não mostra, insinua – e que olhava com profunda nostalgia os cavalheiros que permaneciam sentados ou de pé a conversar. Como quem precisava absolutamente dançar aquela música. Interrompo a conversa na roda de amigos e, obedecendo ao instinto cavalheiro de velho kizombeiro, olho à volta e vejo que a minha mulher rasgava o salão nos braços dum cunhado. “Bom, essa está ocupada, por enquanto”, penso aliviado com os meus botões. Dirijo-me à senhora e faço o gesto de “vamos dançar?”. Com um olhar que me pareceu de gratidão, ela levanta-se, sorri, dá-me a mão e dirigimo-nos para a pista. Ali sim, levei um olhar meio curioso da mulher, entretanto devotada em acompanhar as passadas entusiásticas do “Ndengue Maia”.
“Tuva tekateka, twa tekela k’okuyaka; ndilikoka posi, lomwe ondete vali wé. Etali upange wange okupinga osimõla. Kuti kusimi heti ofeka eyi etu twaiyakela” (Fomos mutilados pela guerra; hoje arrasto-me pelo chão já ninguém me reconhece. Vejam, o meu trabalho é pedir esmola; nem parece que nós é que lutámos por este País) começava fluída a voz do Handanga. Nos enlaçámos na posição 1 da kizomba.
Tão logo entrámos no ritmo da batida, o meu par deu três passos atrás e, mantendo-me no cumprimento dos braços semi-estendidos entrou gradualmente no xinguilamento dançante da sentimentalidade umbundu; Quase sem sair do lugar, deixava o corpo levar-se pelo ritmo, ondulando-o da cintura para cima; baixando a cabeça, flectindo os joelhos; sapateando gentilmente, aproveitava as pausas para movimentos rítmicos e sentidos, de cima para baixo; da kizomba era só o ritmo que mantinha como que habituada a camuflar outras “dançalidades” no fingimento. Reconheci de imediato o desafio dançante a que ela me arrastava: era o Tchisosi.
Vakwetu v’ovanda, aiwé maiwé. Ame, ovolu sikwete, aiwé” (Os outros andam, ai minha mãe. Eu nem pernas tenho, aiwé”). Percebi: ela tinha entrado na espiritualidade do poema musicado. Respondi automáticamente e mudei para o passo masculino complementar da dança a que me estava a arrastar. Dou dois passos para trás, seguro-a pelas mãos; agacho-me ligeiramente e dou o sapateado imperativo do homem que convida a donzela ao saracoteio paradeado das formas na dança dengosa. Ela olha-me nos olhos agradecida, dá dois pontapézinhos no ar em jeito clássico de quem sabe, e faz o requebro sentido – e sensual também – de quem se rende ao sentimento.
“Okutchita, akome, ame ndukusole vo; masi katchitava, monda ku Suku ekando. Nda otala ale ohali, okanene ukwele kulo kilo lieve. Ame ndikuka, tchingõkela ohenda” (Também gostaria de ter filhos, creiam; mas não pode ser porque aos olhos de Deus é pecado. Se já sofres, não tragas outra pessoa para a Terra. Envelhecerei sentindo pena de mim próprio).
Enlevado já também na magia do par, parto para a pantomia
típica do interpretante. Assumo a resposta. Tomo a estância do guerreiro
satisfeito com a performance da “sua” mulher, e sigo já querendo ela e o
sentimento expresso na rítmica própria de quem lamenta. Baixo a cabeça, bato o
pé. Não à frente e com força; para o lado e ao de leve. Bato a palma. Não
arrogante em frente do rosto; sentida, na altura do peito. Ela assume a
estância trêmula de quem “sofre o sofrimento”, meneia a cabeça , ginga
sensualmente, bate no peito, abre as mãos em jeito de prece, e levanta para mim
uns olhos de gazela em oferenda.
“Suku otcho mwotcho olwali autunga. Akuti ava vo valia, etu okukumõha wé. Tufila nhe, twihi ko vo kamwe (Deus criou assim o Mundo. Enquanto uns comem, nós a engolir saliva. Porquê deixam-nos morrer? Dêm-nos também um pouco)”.
Ela passa decidimamente para o lado sentimental do tchisosi.
Entrega-se! Junta as mãos em frente do peito; aquieta-se; ondula ritmicamente.
Sapateia suavemente, olha para a biqueira dos pés que movem gentilmente para a
frente e para trás pontapeando o ar e pousando pela planta do pé. O corpo,
insinuando voluptuosas formas nas dobras fartas do trajo africano, ondula em
requebros que lembram... momentos íntimos inimagináveis naquele momento. O
rosto e os olhos encompassam o poema sofrido, engendrado na mensagem do canto.
“Ko tembo yombwandja, Ndjoao lomãla vahe vasila ondjo yavo, vatilila ko Luanda. Tchilo ombembwa yeya, Ndjoao weya lomanha yahe. Tundi k’ondjo yange tyiuki kimbo lyene. (No tempo da guerra, o João e os seus filhos deixaram-me a casa e fugiram para Luanda. Agora que a Paz chegou, o João chegou cheio de arrogância: “Saiam da minha casa e voltem para o vosso kimbo)”. Perco-me na imensidão do mundo inesperado de beleza, nostalgia e sentimento e, fiel ao espírito de artista, acompanho com a palma, o menear e o sapateado, o êxtase óbvio do transe Tchisosi da beleza do meu par. E estava amando!
“Vakwetu v’ovanda, aiwé maié. Ame, ovolo sikwete, aiwé” (Os outros andam, ai minha mãe. Eu nem pernas tenho, aiwé”).
Veio o refrão final. Com mais uns acordes do soberbo ritmo, a
música acabou e com ela a magia do momento. A assistência da qual nos tínhamos
completamente abstraído e acompanhara o show de sentimento, aplaudiu. Fiel à
cortesia“kizombeira” ofereço o braço e conduzo-a ao seu lugar. Fico entretanto
estarrecido pelo olhar de profunda nostalgia com que me sussura um musicado:
“Ndapandula”. Pergunto se a música diz-lhe algo: “Tenho três irmãos mutilados
na guerra do Huambo.”
Apeteceu-me praguejar: “P... !”. Mas senti-me melhor
pensando: “Valeu, Justino Handanga”.
Chego na nossa mesa e a mulher, que tinha seguido o filme,
diz no seu jeito calmo: “Vamos já para casa”. Ali sim, praguejei mesmo: “P... !
Um cidadão nem já se pode sentimentar um kabukadinho”. Ainda por cima, quando li este artigo a ela e
a uma amiga, teve a coragem de dizer: “aquele espectáculo afinal era mazé para
escrever isso...”
Justino, Deus estava contigo quando te inspiraste neste
belíssimo poema da espiritualidade das coisas umbundu.
(Com Faustino Tchandja Tchenhe) Livanga, amandjange; ko vasyahulu, tukalissnga. Passa à frente, meu irmão. Nos encontraremos junto dos antepassados...
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