Há dias, o procurador-geral da República de Angola, Hélder Pitta Groz, assumiu ter a consciência de “que nem tudo está a ser feito correctamente ao nível da Procuradoria-Geral da República (PGR). Temos cometido erros! Uns voluntariamente, isso digo, e outros involuntariamente”.
A cândida admissão de que a PGR comete “erros voluntários” é tão
surpreendente que se fica na dúvida se o distinto general Hélder Pitta Groz não
estará já a preparar o pós-2027. Ou se, porventura, tem finalmente noção de que
uma coisa é o sentir político-social, a opinião publicada, as suspeitas, e
outra é a prova de factos concretos em tribunal.
É bem possível que o julgamento em curso dos generais Kopelipa e Dino
estivesse na mente do procurador-geral quando admitiu que a PGR cometeu erros,
voluntários ou involuntários, na preparação dos processos judiciais. Estes
erros, bem como a incapacidade do sistema judicial para lidar com a
complexidade processual, estão claramente a vir ao de cima no julgamento.
O DIFÍCIL ARRANQUE DO JULGAMENTO
No dia 10 de Dezembro de 2024, às 10h00 devia ter começado o julgamento dos
generais Kopelipa e Dino e de outras entidades, incluindo várias empresas.
Não começou. A juíza-presidente, Anabela Valente, reconheceu que se tinha
esquecido de uma formalidade legal fundamental e adiou o julgamento. A dita
formalidade era a que está prevista no artigo 362.º do Código do Processo Penal
(CPP), que no seu número 6 determina que o despacho que designa o dia da
audiência de julgamento deve ser notificado ao arguido e respectivo defensor pelo
menos 15 dias antes desse dia. Não foi o caso, pois o primeiro despacho era de
uns poucos dias antes da audiência.
A nova data marcada foi o dia 10 de Março de 2025. Lá começou o julgamento,
que rapidamente foi suspenso. Faltava um tradutor de mandarim. De facto, um dos
arguidos, Yiu Haimin, tem a nacionalidade chinesa. Também aqui o CPP é claro. O
artigo 105.º, n.º 3, estabelece que “é nomeado, sem encargos para a pessoa que
não falar a língua portuguesa ou não a compreender bem, um intérprete idóneo”.
O n.º 8 sanciona com a nulidade a inobservância do disposto nesse n.º 3. A
juíza conselheira presidente tinha uma lei expressa a determinar as regras
relativamente à presença de arguidos que não falam o português, mas por alguma
razão não preparou o julgamento em conformidade.
Encontrou-se então o intérprete, graças aos bons ofícios da Embaixada
Chinesa, e o processo quase arrancou…
Afinal, foi suspenso de novo. Descobriu-se que um dos arguidos, a empresa
CIF, não tinha advogado no processo. Obviamente, isso é uma nulidade insanável.
Ninguém pode ser julgado sem advogado. O que não se percebe é a razão pela qual
a juíza não tinha detectado essa situação antes do início do julgamento e,
portanto, não tinha nomeado um defensor oficioso ou, perante a possibilidade de
atraso do processo, não se limitou a declarar a separação dos processos, nos
termos do artigo 24.º do CPP. Este artigo permite separar processos para
“evitar o retardamento excessivo do julgamento de qualquer dos arguidos” (art.º
24, b).
Há algo de estranho nestes adiamentos constantes, que resultaram do
incumprimento de regras básicas da lei processual penal. Não se tratou de uma
difícil questão jurídica levantada por uma defesa arguta que atrapalhasse o
tribunal, como muitas vezes acontece. Pelo contrário, foram falhas
incompreensíveis em questões da mais elementar simplicidade.
A IMPREPARAÇÃO JUDICIAL
A impreparação de alguma magistratura dos tribunais superiores para lidar
com casos mediáticos e complexos, que envolvem figuras de destaque, com quem
muito provavelmente conviveram ou tiveram relações no passado, parece ser uma
realidade. Nunca se devia ter avançado para estes processos sem uma anterior e
profunda reforma da magistratura, além de uma intensificação da sua preparação
técnica. Lembremo-nos de que se está a lidar com um Código de Processo Penal
recente, de 2020.
Nos meios judiciais, tem suscitado alguma perplexidade o facto de os juízes
responsáveis por este caso não terem experiência significativa em termos
criminais. A juíza Anabela Valente preside ao julgamento e é auxiliada pelos
juízes conselheiros Raul Rodrigues e Inácio Paixão.
Anabela Valente é licenciada em Direito, com especializações nas áreas
jurídico-civil, jurídico-económica e em direito do trabalho e segurança social,
tendo ainda frequentado um mestrado em Direito Criminal, que não terá
concluído. Esteve no Tribunal Provincial de Luanda (na área da família), pelo
Tribunal do Kwanza Sul, e, desde 2020, como juíza desembargadora com
competências nas áreas cível, contencioso administrativo, fiscal, aduaneiro e
família. Portanto, em termos de exercício profissional, parece que nunca terá
trabalhado com o direito e processo penal. Raul Rodrigues era um académico
reputado na área civil. Tem mestrado em Ciências Jurídico-Civis pela Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa e doutoramento em Ciências Jurídico-Civis
pela mesma instituição. Foi decano da Faculdade de Direito da Universidade
Mandume ya Ndemufayo de 2010 a 2015. Finalmente, Inácio Paixão é um juiz de
carreira, nomeado em 2023, cujo currículo não é público, desconhecendo-se a sua
experiência penal. Em rigor, podemos dizer que o julgamento tem dois civilistas
(e não criminalistas), o que efectivamente, num julgamento desta complexidade,
levanta algumas interrogações.
ERROS PROCESSUAIS GRAVES
Finalmente, o processo começou no seu ritmo normal e os arguidos, bem como
variados declarantes, prestaram os seus depoimentos. O facto que transpirou de
forma mais saliente foi a ausência de Manuel Vicente – ex-vice-presidente da República
e ex-presidente do conselho de administração da Sonangol –, que tem gerado
controvérsia. Embora amplamente citado na acusação e apontado pelos arguidos
como figura central nas negociações com o China International Fund (CIF), o
tribunal decidiu não o convocar para depor, optando por se basear
exclusivamente nas declarações prestadas por Vicente durante a fase de
instrução contraditória. A juíza Anabela Valente justificou a decisão alegando
que tais declarações são suficientes para a produção de prova, apesar dos
pedidos da defesa para a sua audição presencial ou remota, dado que Vicente não
reside actualmente em Angola. Facilmente se compreende que o argumento da juíza
não é válido, face à centralidade que Vicente assume no processo. Só um
impedimento legal efectivo – como a existência de um processo similar contra
ele a correr em separado – o poderia afastar de intervir neste processo. Não
sendo assim, a defesa poderá invocar o incumprimento do princípio geral do
artigo 388.º do Código do Processo Penal, que determina que o tribunal ordena,
por iniciativa própria ou a pedido das partes envolvidas, que sejam
apresentadas todas as provas permitidas por lei que considerar importantes para
descobrir a verdade e tomar uma decisão justa sobre o caso. Isso vale para
provas mencionadas na acusação, no pedido de abertura da instrução
contraditória, na resposta do arguido ou na lista de testemunhas indicadas. Em
termos constitucionais, o direito de defesa dos arguidos (artigo 67.º da
Constituição) e o direito a um julgamento justo (artigo 72.º da Constituição)
não podem ser violados, o que acontece com a não audição contraditada de Manuel
Vicente É óbvio que esta decisão tem o condão de inquinar todo o processo e
pode ser futuramente revertida no Tribunal Constitucional se este mantiver a
doutrina do famoso caso Filomeno dos Santos. Lembremo-nos de que o Tribunal
Constitucional de Angola, através do Acórdão n.º 883/2024, datado de 3 de Abril
de 2024, considerou inconstitucional a decisão do Tribunal Supremo que havia
condenado José Filomeno dos Santos, conhecido por “Zenú”, no processo dos 500
milhões de dólares. A decisão assentou no entendimento de que foram violados
direitos fundamentais dos arguidos, em especial o direito à defesa, o
contraditório, o julgamento justo e a legalidade processual. Um dos elementos
centrais da decisão foi o facto de o Tribunal Supremo ter desvalorizado uma
carta assinada por José Eduardo dos Santos, então presidente da República, que
autorizava a transacção financeira em causa. O Tribunal Constitucional
considerou essa omissão uma falha grave, comprometendo o exercício pleno da
defesa e a busca da verdade material. Por isso, determinou a devolução do
processo ao Tribunal Supremo, para que corrigisse essas inconstitucionalidades
e reformulasse a decisão com base nos princípios constitucionais. A mesma
história pode repetir-se com a não audição de Manuel Vicente.
Fontes próximas ao processo indicam que, até ao momento, as testemunhas
arroladas pela acusação não têm corroborado de forma clara os factos imputados
aos arguidos. As suas declarações têm, na maioria dos casos, levantado dúvidas
ou mesmo contrariado elementos essenciais da acusação. Com o desenrolar das
audiências, permanece em aberto a questão central: o que aconteceu realmente, e
que leitura fará o tribunal das provas efectivamente produzidas em juízo.
Finalmente, a questão do segredo das audiências. As audiências do
julgamento têm decorrido com restrições significativas à presença da imprensa,
especialmente durante a fase de produção de provas. Segundo o Tribunal Supremo,
esta fase decorre à porta fechada, sem cobertura jornalística nem presença de
jornalistas na sala. A imprensa foi informada de que apenas poderá acompanhar a
leitura do acórdão final. Em sessões anteriores, embora não fosse permitida a
captação de imagens ou gravações sonoras, os jornalistas puderam estar
presentes para tomar notas. No entanto, essa possibilidade foi posteriormente
restringida.
A lei processual penal, no seu artigo 364.º, impõe que a audiência de
julgamento seja pública, sob pena de nulidade insanável. A publicidade é
regulada especificamente pelo artigo 95.º do mesmo Código do Processo Penal. Aí
se determina o mesmo, isto é, que a regra do julgamento é a publicidade e se
tal não acontecer o julgamento será nulo; mais se concretiza que a publicidade
integra a divulgação dos actos processuais pelos meios de comunicação social. A
publicidade apenas não abrange os dados, peças e elementos relativos à reserva
da vida privada que não constituam meio de prova, cabendo ao juiz
especificá-los por despacho e ordenar a sua destruição, o que não é o caso
neste julgamento. Não se tem conhecimento de discussões sobre temas da vida
privada.
O que se conclui é que há dois erros, voluntários ou involuntários – a
ausência de Manuel Vicente e a proibição de publicidade da audiência sem
fundamento e em aparente contradição com a letra do Código do Processo Penal –
que podem determinar a ineficácia deste julgamento. É esta a justiça que se
pretende? Fica a questão.
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