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BILHETE DE IDENTIDADE: O Luxo de Ser Cidadão em Angola! - Denílson Duro

Senhoras e Senhores, preparem-se! A pátria nos chama para mais uma epopeia administrativa: apenas cerca de 16 milhões de cidadãos angolanos têm bilhete de identidade (B.I.), entre os mais de 37 milhões que, segundo o Censo de 2024, habitam esta pátria rica em recursos e pobre em registos. Sim, senhoras e senhores, mais de metade da população está, literalmente, fora do radar do Estado. É como se andássemos a construir um país com fantasmas.

O director nacional de Identificação, Registos e Notariado, Aristides Marques, em entrevista à ANGOP, anunciou com um certo orgulho que os dados do sistema remontam à modernização iniciada em 1997. Ou seja, em mais de duas décadas, conseguimos registar menos da metade da população. Isso, sim, é uma proeza de engenharia social ao estilo angolano! O nosso ritmo de desenvolvimento é como o do Kubinga nas horas de ponta: lento, incerto e com paragens frequentes por “motivos técnicos”.

O Governo assegura que está em marcha uma emissão massiva de bilhetes de identidade, o que, em teoria, resolveria este abismo cívico. Mas no terreno, a realidade é mais irónica do que promissora. Basta passar por um balcão de identificação para ver o filme: sistemas em baixo, falta de papel, impressoras avariadas, operadores sem energia e cidadãos desinformados. No final, volta-se para casa com uma senha e a recomendação de “voltar para o mês”.

Mas vejamos com sarcasmo patriótico os "avanços e benefícios" desta ausência maciça de identificação civil:

1. Desenvolvimento económico?

Ora essa! Um cidadão sem B.I. não pode abrir conta bancária, não pode aceder a crédito, não pode criar empresa formal, nem sequer ser empregado de forma legal. Resultado: a economia informal floresce! É uma selva livre de impostos, regulamentações e estatísticas confiáveis. O kinguilas, o zungueiro e a mãe que vende bolinhos à porta da escola são os verdadeiros motores da economia invisível, e sem B.I., ninguém os atrapalha com burocracias.

2. Informatização da economia?

Claro que sim! O Plano Nacional de Desenvolvimento fala em “digitalização dos serviços”, mas esqueceram-se de que sem B.I., o cidadão não acede a serviços básicos como NIF, contas móveis, acesso ao Kwenda ou registo no INSS. Estamos a informatizar o vazio. Criamos sistemas para servir apenas os já servidos. O resto... que fique offline, como manda a tradição.

3. Combate à pobreza?

Com certeza. Afinal, como se combate a pobreza de alguém que não existe para o Estado? Se não está no sistema, não tem Kwenda, não tem cesta básica, não tem subvenção, não tem habitação social. É a pobreza camuflada, elegante e silenciosa. Assim, o Governo pode continuar a apresentar taxas de pobreza "sob controlo", enquanto nos musseques, milhões sobrevivem sem nome nos ficheiros oficiais.

4. Melhoria da cidadania?

Só se for para os que já nascem em clínicas privadas, com registo na hora, e pais com cartões multicaixa. Para o cidadão rural, do Bentiaba ao Cuango, a cidadania é uma teoria distante. Ainda há angolanos que, em pleno século XXI, chegam à idade adulta sem nunca terem sido registados. E não é exagero, é realidade: como é que se exige patriotismo a quem nunca foi reconhecido como cidadão?

5. Documento base eleitoral?

Aqui mora o perigo! Usar o B.I. como documento base eleitoral até pode parecer lógico... Mas e se os 21 milhões que ainda não têm o documento resolvessem aparecer no sistema antes das eleições? Isso sim, seria o verdadeiro "terror político". Porque um povo identificado, com voz e voto, exige contas. E isso, meus senhores, pode desestabilizar o bom e velho costume de "eleições previsíveis".

6. Desafios estruturais (mas que ninguém quer enfrentar):

Falta de unidades móveis para atender zonas remotas.

Corrupção nos balcões: quem tem “gasosa” recebe primeiro.

Baixa literacia digital e falta de campanhas de sensibilização.

Morosidade institucional e ausência de vontade política.

E claro, o medo político de dar nome, número e poder ao povo.

Conclusão (com gosto de ironia nacional):
Angola é um país moderno no discurso, mas colonial na estrutura. Enquanto não tivermos todos os cidadãos identificados, a democracia é um teatro, a economia é uma bolha, e a cidadania é uma promessa por cumprir. Transformámos o B.I., que devia ser um direito, num luxo de elite urbana. Mas não desesperemos. Com mais umas conferências, uns projectos-piloto, algumas doações externas e promessas para 2030, quem sabe um dia... seremos todos cidadãos de papel passado.

Até lá, continuemos a construir o país com base em estatísticas imaginárias e cidadãos invisíveis. Afinal, quem precisa de identidade, quando se tem fé?

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