Tive o cuidado de ler repetidas vezes o desabafo da Dr.ª Maria Luísa Abrantes (Milucha) — "Os zairenses residentes em Angola..." — para perceber o que realmente ela quis transmitir ao usar o termo "zairense".
Se, para ela, "zairenses" é o mesmo que "congoleses
democráticos", então está mais do que certa. Tocou na ferida. Foi essa a
sensação que tive à medida que lia o seu suculento, pertinente e corajoso
texto. Oxalá as autoridades competentes saibam colher o que de positivo há nos
escritos dessa senhora que não se intimida e que fala sem papas na língua,
dizendo o que acha ser certo para si e para a Pátria.
Na verdade, estamos a ser silenciosamente invadidos e culturalmente alienados. Nós, que convivemos diariamente com essa invasão cada vez mais ostensiva, começamos a ficar desesperados. Os zairenses não escondem a sua verdadeira identidade, nem a disfarçam. Comportam-se como se estivessem em Kinshasa. Em cada canto do Hoji-ya-Henda, o meu bairro, há um casebre adaptado como igreja. Fazem orações na calada da noite, incomodam toda a gente, gritam sem cessar e colocam música no volume máximo. Os únicos que nunca escutam, ou fingem ser surdos, são as autoridades policiais. No meu bairro, a poluição sonora não é crime. Já fui várias vezes à polícia apresentar queixa, mas sem efeito. Talvez por isso andem tão à vontade por aqui, impõem regras à comunidade, não se submetam à ordem instituída e permaneçam impunes, como se tivessem um padrinho na cozinha. Todos eles possuem Bilhete de Identidade angolano — é a primeira coisa que tratam assim que chegam a Luanda. Um verdadeiro atentado à segurança nacional.
No ano passado, num táxi, uma senhora conversava em lingala com alguém no
Congo-Kinshasa. Explicava, em detalhe, como conseguiu chegar a Luanda e obter o
Bilhete de Identidade angolano. Orientava a pessoa do outro lado da linha a
seguir os mesmos passos. Outro exemplo é o de uma vizinha nossa, também
zairense. No ano passado, emigrou para o Brasil. Primeiro foi a filha e, depois
de algum tempo — um ano ou pouco menos —, seguiu a família completa. Saíram do
Congo, conseguiram a documentação angolana, vendiam à porta de casa sem pagar
impostos, juntaram dinheiro e emigraram. Este é apenas um caso entre milhares.
Os autocarros que saem do Cazenga para o "Golfo- Dois"
transportam, em média, mais de 75% de passageiros zairenses com documentação
angolana. Eu, que gosto de ouvir histórias do povo, por vezes subo nesses
autocarros. Eles são mesmo congoleses. Torcem pelo Congo. Nos dias de jogo,
quando Angola defronta o Congo-Kinshasa, apenas os golos do Congo são
efusivamente festejados. Vestem-se com as cores do Congo e entoam o hino
nacional congolês com muita categoria. Enfim...
Mais um exemplo: hoje mesmo, dia 22 de Fevereiro de 2025, o candongueiro
onde andei era conduzido por um zairense com documentos angolanos. Ele não
sabia que falo lingala. Enquanto carregava o Hiace, que tinha uma senhora como
cobradora, conversava por video-chamada com alguém em Kinshasa. Contava-lhe
que, há dias, um colega taxista viajou para Portugal, a caminho de França. O
amigo possuía passaporte angolano e já tinha visto de entrada. Faltava-lhe apenas
dinheiro para a viagem. Para resolver o problema, vendeu o Hiace do seu patrão
e viajou. O patrão, apercebendo-se do desaparecimento do carro, tentou
contactar o motorista, sem sucesso. No dia seguinte, procurou-o, sem êxito. No
segundo dia, fez uma participação à polícia. Passada uma semana, a polícia
descobriu que o taxista tinha viajado para Portugal. Ele contava este episódio
com entusiasmo e, a dada altura, disse: "... ebele bazokota na Ngola,
bazwi dokumã awa... apré sa, bamususu bazokende na potô..."
Em português: "... nestes dias, muitos congoleses estão a entrar em
Angola. Depois tratam os documentos angolanos e viajam para o
estrangeiro..."
Trago estas histórias para evidenciar a facilidade com que adquirem a
documentação angolana. Nós, cidadãos, estamos preocupados. Qualquer dia,
perdemos a nossa soberania.
0 Comentários