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Do indulto presidencial à crise que assola a nossa justiça - Ilídio Manuel

 Os últimos dias do ano findo e os primeiros deste novo ano têm sido marcados por uma excessiva mediatização da figura do Presidente da República como resultado do indulto que ele concedeu a 51 pessoas que estavam em rota de colisão com a justiça. 

O perdão presidencial, que se enquadra nos festejos dos 50 anos de independência nacional, está, no entanto, a ser encarado em alguns círculos meios forenses como uma politização da nossa justiça ou, no mínimo, dos casos considerados bicudos.

No espaço público, a imprensa sob controlo estatal esmera-se por dar grande visibilidade ao acontecimento e enaltece, até à exaustão, o PR, tendo arregimentando para o efeito os habituais comentadores e analistas ao serviço do regime.

À porta das cadeias ou no interior dos estabelecimentos prisionais, as TPA´s e a rádio que diz que “une o país” têm vindo a colher e “filtrar” os depoimentos junto dos beneficiários do indulto presidencial.

A boca pequena, diz-se que os beneficiários dessa medida terão sido industriados pelos gabinetes de acção psicológica no sentido de deificarem diante das câmaras de TV´s o gesto magnânimo do PR por lhes ter concedido à liberdade e dado mais uma oportunidade na vida. É inegável que o perdão concedido pelo PR é merecedor de aplausos, mas isso pode ou podia ser feito sem empolamentos ou exagerados elogios que, nalguns casos, chegam a raiar o culto de personalidade.

Os excessos de mediatização do perdão presidencial levam-nos a crer que estamos diante de mais uma acção premeditada e concertada no sentido de inverter os baixos níveis da popularidade João de Lourenço e o clima de raivas surdas cada vez mais crescente ao seu actual modelo de governação.

Apesar de a medida presidencial ter abrangido mais de cinco dezenas de condenados, é dado adquirido que os destaque dessa acção recaem sobre Zenú dos Santos, a influenciadora digital Neth Nhara e aos quatro activistas cívicos, nomeadamente Adolfo Campos, Gilson Moreira, tcp, Tanaice Neutro, Hermenegildo Victor José, aliás, Gildo das Ruas, e Abraão Pedro Santos, tcp, O filho da Revolução – Pensador, condenados no ano passado a dois anos de prisão, aparentemente por motivações políticas.

Em alguns círculos de opinião acredita-se que o recurso ao indulto de que lançou mão o PR teria como um dos objectivos “desencalhar” alguns processos judiciais que colocaram os tribunais numa saia justa. E apontam o caso do antigo presidente do Fundo Soberano e filho do ex-PR, Zenu dos Santos, que esteve no centro de um conflito de competências entre os dois maiores tribunais superiores.

Com o indulto, crê-se que João Lourenço terá evitado não só a exposição das disfunções de dois tribunais, como também passar a ideia de que ele não tem motivações políticas ou pessoais em perseguir um dos filhos do ex-PR.

Do ponto de vista jurídico, a emenda veio a revelar-se pior do que o soneto, visto que o indulto presidencial subverteu uma regra jurídica ao incluir pessoas cujos processos não têm sentenças transitadas em julgado, sendo o caso mais flagrante o processo de Zenú dos Santos sobre o qual impendem recursos.

Se o indulto serviu, aparentemente, para encerrar um conflito judicial entre os dois tribunais superiores, o facto é que o mesmo levantou outra polémica que tem a ver com o perdão presidencial não ter abrangido outras figuras envolvidas no “processo 500 milhões de dólares”, com destaque para o antigo governador do Banco Nacional de Angola (BNA), Víctor Filipe.

À falta de um pronunciamento convincente adensa-se a convicção de uma suposta discriminação e injustiça cometida contra os demais envolvidos nesse processo que tem Zenú dos Santos como seu “cabeça de cartaz”.

Zola Benga, advogado dos 4 activistas que foram abrangidos pelo perdão presidencial, considera que houve um aproveitamento político por parte do Chefe de Estado em conceder o indulto aos seus constituintes, já que estes poderiam ser postos em liberdade condicional depois de terem cumprido metade da pena a que tinham sido condenados. Diz mesmo que a entrega das solturas estava prevista para antes do Natal.

Em sua opinião, o indulto não esconde o mau funcionamento da nossa justiça que, segundo o jurista, não foi também capaz de responder ao pedido de habeas corpus que intentou a favor dos seus clientes.

Outros juristas alinham pelo mesmo diapasão, pelo que consideram que o perdão presidencial deu, por um lado, a possibilidade de João Lourenço colher dividendos políticos e, por outro, reduzir a pressão interna e externa das ONG´s, com destaque para a Amnistia Internacional que havia lançado uma campanha a favor dos activistas, que considerou as prisões e condenações como tendo sido ilegais.

Verdade seja dita, não é a primeira vez em que o regime angolano lança mão a um expediente do género para supostamente “apagar” erros grosseiros e imperdoáveis cometidos pelos distintos órgãos da justiça.

Convém recordar que em meados de 2015, um grupo de jovens activistas tinha sido detido e acusado de crimes de rebelião e actos preparatórios de golpe de Estado, quando se encontrava a ler pacificamente um livro do cientista político norte-americano Gene Sharp.

Sem provas consistentes que indiciassem a preparação de um golpe de Estado, as autoridades desdobraram-se numa série de acções que levaram à convocação dos deputados da Assembleia Nacional e do corpo diplomático acreditado no país, a quem informaram sobre os supostos planos golpistas.

Numa clara violação ao segredo de justiça e de grosseira interferência no sistema de justiça, o antigo Presidente da República, José Eduardo dos Santos, chegou mesmo a acusar os jovens activistas, com Luaty Beirão à testa, de terem gizado em plano para a alteração da ordem constitucional por meios violentos.

Nesse aberrante julgamento, que mais perecia político do que jurídico, o Ministério Público, encurralado, viu-se “forçado” a recuar e retirar as acusações de “ crimes de rebelião e actos preparatórios de Golpe de Estado” convertendo-as em “associação criminosa”.

Prevendo um descrédito total do julgamento, e diante da pressão internacional que apelava a um julgamento justo e despolitizado, às autoridades angolanas não lhes restou outra saída, senão lançar mão a uma amnistia geral, cuja proposta foi submetida pelo Executivo à Assembleia Nacional.

Mas antes, e na perspectiva de evitar o pior, foi aprovada às pressas a Lei das Medidas Cautelares em Direito Penal que permitiu a soltura e a consequente prisão domiciliar do grupo de activistas, que ficou celebremente conhecido pelos “15+2”. Tanta era a pressa que os jovens foram soltos sem que a lei tivesse sido aprovada pela AN.

Se é certo que o indulto foi um ganho político para o Presidente João Lourenço, não é menos verdade que essa medida deixou transparecer um certo aproveitamento político que não conseguiu esconder a crónica crise do sistema judicial, que se mostra cada vez mais subserviente ao poder político.

Os números são, de facto, preocupantes, se tivermos em conta que em Angola existem 43 estabelecimentos prisionais em Angola que albergam uma população penal de cerca de 30 mil reclusos.

Se levarmos em consideração os dados estatísticos de que existem 30 milhões de angolanos, salta à vista que cerca de 1% dos angolanos estão em conflito com a justiça

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