Empresário com vocação para agricultura, produção de sal, no imobiliário e outros sectores económicos do País, Fernando Ferreira defende mudança profunda do paradigma agrícola. Advoga o aumento de 2% para 10% da quota do OGE para a agricultura, conforme a declaração de Malabo, e considera a fome, o desemprego e a falência das empresas factores interligados que podem levar à insegurança alimentar. Mais do que isso, sugere maior apoio ao empresariado nacional para a alavancagem da economia.
Mais de 1,3
milhão de pessoas em Angola (4% da população) enfrentaram níveis elevados de
insegurança alimentar aguda em 2023, segundo o Relatório Mundial sobre a Crise
Alimentar. Onde reside o problema para tanta fome que graça no País nos últimos
anos?
A fome e a miséria que assolam o nosso País, nos últimos anos, obrigam-nos a
uma profunda reflexão e causam uma dor que dilacera os nossos corações. Para
reverter esta situação, é necessário uma abordagem abrangente e multifacetada
que envolva políticas, investimentos e acções coordenadas em várias áreas. Na
verdade, a fome, o desemprego e a falência das empresas estão interligados: o
desemprego pode levar à insegurança alimentar, enquanto a falência empresarial
pode resultar em perda de empregos. Esse ciclo pode gerar pobreza, reduzir o
consumo de produtos e serviços, bem como agravar a fome.
Do ponto de vista prático, como se quebra este ciclo?
É fundamental promover a criação de empregos, apoiar as empresas nacionais e fortalecer
a resiliência económica das comunidades através de investimentos, capacitação
profissional e programas de desenvolvimento económico. Se não houver uma
mudança na forma como vemos e interpretamos o País, vamos assistir, nos
próximos anos, a um aumento dos níveis de pobreza.
Os desafios
que o País enfrenta no domínio da segurança alimentar podem ser ultrapassados
sem o aperfeiçoamento das técnicas de produção baseadas na ciência e na
biotecnologia moderna?
O uso de técnicas avançadas, como a biotecnologia, pode aumentar a
produtividade agrícola, melhorar a resistência das culturas a pragas e doenças,
reduzir custos de produção e contribuir para a segurança alimentar a
longo-prazo.
O senhor foi um dos pioneiros na defesa da introdução de sementes geneticamente
modificadas. Como encara a operacionalização, pelo Executivo, do Comité de
Sementes Geneticamente Modificadas?
A medida é positiva, mas vem tarde, na medida em que o Executivo, através do
Ministério da Agricultura, permitia a importação de produtos para o consumo
humano e animal de origem de sementes geneticamente melhoradas, porém não
permitia a introdução dessas sementes nas nossas explorações agrícolas. Era um
absurdo. Esse avanço tecnológico importante só vai trazer benefícios
significativos para a agricultura, como, por exemplo, a melhoria da
produtividade, a redução de perdas de colheitas e a promoção da
sustentabilidade agrícola. É importante que a regulamentação e a implementação
do uso dessas sementes sejam feitas de forma responsável, levando em
consideração os impactos ambientais, sociais e de saúde pública. É algo por que
vale a pena lutar.
O desenvolvimento da agricultura rumo à auto-suficiência passa por esta via?
Sem dúvidas. Estas tecnologias podem aumentar a produtividade, melhorar a
resistência das culturas a condições adversas e pragas, assim como contribuir
para a segurança alimentar a longo-prazo. Ao adoptar práticas agrícolas
modernas e sustentáveis, Angola pode fortalecer a sua capacidade de produção
agrícola e caminhar em direcção à auto-suficiência alimentar. A decisão do
Executivo de cumprir com todos os protocolos internacionais relativos ao uso
dessas sementes como parte do compromisso com a sustentabilidade agrícola é
positiva. É importante que as regulamentações sejam implementadas de forma
responsável, considerando os benefícios potenciais que essas sementes podem
trazer para a agricultura do País.
Angola tem um manancial de terras aráveis, entre outras potencialidades. O
que tem faltado ao País para voltar a ser uma potência agrícola em África?
Angola tem vastos recursos naturais, incluindo mais de 35 milhões de hectares
de terras aráveis e água, que representam um grande potencial para se tornar
num celeiro em África. Para alcançar esse objectivo, é fundamental investir-se
em infra-estruturas agrícolas, tecnologia, capacitação dos agricultores, acesso
a mercados e políticas agrícolas eficazes que promovam o desenvolvimento
sustentável do sector agrícola.
O que está a ser mal equacionado para que Angola continue dependente das
importações?
O problema de Angola de importar mais da metade das suas necessidades
alimentares pode estar relacionado com a falta de investimentos adequados na
agricultura local, infra-estrutura deficiente, baixa produtividade agrícola,
desafios climáticos, limitações no acesso aos insumos e tecnologia agrícola,
bem como questões de governança e políticas inadequadas que impactam
negativamente na produção agrícola nacional.
O Governo e o Internacional Finance Corporation (IFC) - membro do Grupo Banco
Mundial - rubricaram um acordo de parceria para implementar um projecto de
desenvolvimento do seguro agrícola no País. A falta de seguro é um dos factores
que emperram a agricultura?
A implementação de um projecto de desenvolvimento do seguro agrícola, em
parceria entre o Governo e o IIFC, é um passo positivo para fortalecer o sector
agrícola em Angola. O seguro agrícola pode ajudar a mitigar os riscos
enfrentados pelos agricultores, a promover a estabilidade financeira e a
incentivar investimentos neste sector, contribuindo, assim, para o seu
desenvolvimento sustentável.
O OGE atribui menos de 2% à agricultura, contrariando a recomendação de
Malabo. Com essa quota é possível desenvolver uma agricultura pujante?
O desenvolvimento do sector agrícola em Angola é desafiado pela alocação de
recursos limitados no Orçamento Geral do Estado (OGE), que destina menos de 2%
para o sector, enquanto a recomendação de Malabo sugere que os Estados devam
alocar pelo menos 10% do orçamento para a agricultura. Aumentar o investimento
no sector agrícola é fundamental para impulsionar o seu crescimento, melhorar a
produtividade e promover a segurança alimentar no País.
O PRODESI, o PLANAPECUÁRIA e outros projectos parece não darem os frutos
desejados. Também partilha dessa visão?
Infelizmente, o plano de fomento e desenvolvimento da pecuária não terá sucesso
enquanto não existir uma mudança do paradigma. A questão que se coloca é se as
espécies escolhidas para cumprir esse objectivo foram ou não submetidas a
estudos de adaptação às condições ambientais e à própria resistência às nossas
endemias. Não menos importante é a produtividade desses animais. Enfim, existe
um conjunto de critérios que acredito que as nossas autoridades cumpriram à
risca na selecção dos animais. Numa primeira fase, o objectivo principal é a
multiplicação em escala para o repovoamento animal em todo o País a médio e
longo prazos, após avaliar a eficiência do projecto.
Como os criadores de peixes em tanques ou redes podem contribuir para que
esse produto deixe de ser de luxo para as famílias?
Os criadores de peixes em tanques ou redes enfrentam um grande desafio ao
tentar acelerar o cultivo e tornar essa valiosa proteína mais acessível à mesa
do consumidor. Os desafios de produção de peixe são transversais em toda a
cadeia de produção de proteína animal. Mesmo com os esforços para aumentar a
produção, o peixe e a carne são ainda considerados produtos de alto luxo e
extravagância. Hoje, o pão é bife para muitas famílias. Essa realidade persiste
devido às assimetrias regionais, aos desafios de acesso aos locais de produção
e aos altos custos envolvidos na actividade.
Enquanto estes obstáculos persistirem, será difícil reduzir os preços do peixe e da carne, o que agrava pelo fraco poder de compras de muitas famílias. A falta de acesso a locais de produção eficientes, as disparidades regionais e os custos elevados de produção impactam directamente o preço final desses produtos, tornando-os mais restrito a determinados segmentos da população.
Portanto, é crucial abordar estas questões estruturais, para se promover o consumo e o aumento da produção por via de instrumentos financeiros mais baratos e assertivos, menos burocráticos, de forma a maximizar-se a produção e reduzir o preço dos produtos, principalmente, de proteína animal, colocando-os ao alcance de um maior número de consumidores, contribuindo, assim, para uma alimentação mais saudável e equilibrada.
Como olha para o fomento, produção de peixe, carne, leite e ovos através dos
referidos programas?
O cenário económico em Angola é complexo, marcado pela dependência do petróleo.
O Presidente João Lourenço comprometeu-se a combater a corrupção e a promover a
igualdade e o bem-estar das populações, porém membros importantes do seu
Executivo parece estarem a contrariar esses objectivos, criando obstáculos aos
empresários e à população, em geral, atrasando o desenvolvimento económico do
País e promovendo a promiscuidade entre a política e o empreendedorismo. Os
desafios que os angolanos enfrentam incluem a diversificação económica e a
eliminação das desigualdades para a promoção do bem-estar social. A inflação e
a volatilidade cambial são preocupações constantes para os empresários, pois
essas alterações impactam os preços e o poder de compras da população.
Está a dizer
que a economia se encontra ‘adoentada’?
A importação é um ‘cancro’ que corrói e destrói toda a cadeia de produção.
Normalmente, a importação é realizada, maioritariamente, por cidadãos
estrangeiros oportunistas que não investem na produção nacional, corrompendo
tudo e todos para fragilizar quem produz, tornando o País dependente e
vulnerável aos seus propósitos, muitas vezes com fins inconfessáveis. O decreto
presidencial que elege mais de 50 produtos da cesta básica como sendo
prioritários ao crédito e à produção nacional ainda é uma ficção. Defendo, por
isso, que todos os produtos considerados essenciais ou da cesta básica deveriam
ser proibidos de importar. Ao defender a retirada da subvenção do preço da
gasolina e a canalização directa desses recursos aos produtos da cesta básica,
tem um impacto directo e imediato na qualidade de vida dos cidadãos, garantindo
acesso a alimentos essenciais a preços mais acessíveis, reduzindo a inflação e
ajudando a estabilizar o custo de vida da população, promovendo, assim, a
segurança alimentar.
E qual é a penetração do grupo FF na economia nacional?
O projecto de desenvolvimento do sal na Baía Farta foi, sem dúvida, o maior
projecto desenvolvido em 2018, e ainda há muitos bons em curso neste sector. No
entanto, as Salinas FF sofreram grande derrapagem financeira, devido à
desvalorização cambial e outros problemas típicos de projectos pioneiros e
inovadores. Esperamos concluir a última fase de correcção ainda durante este
ano e contribuir para o desenvolvimento sustentável do País. O grupo está em
várias frentes e já empregou, desde o ano 2000, mais de 2050 trabalhadores,
alguns dos quais entraram como primeiro emprego, e na sua maioria jovens. Por
isso, digo sempre, é com empresários e instituições fortes que Angola e os
angolanos vão sair da inadimplência para o desenvolvimento sustentável.
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