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O projecto colonial da elite política - Elísio Macamo

 A Frelimo já tem o seu candidato e a oposição também prepara-se para ter os seus. A grande inquietação é saber se esses candidatos são suficientemente íntegros, humildes ou apresentáveis para dirigir o país. É verdade que essas são qualidades importantes. Mas é estranho que nessa preocupação não entre a questão de saber que projecto político esses candidatos têm. Numa altura em que o país devia discutir isso, presta-se maior atenção ao supérfluo.

O maior partido de Moçambique escolheu o seu candidato sem nenhuma discussão sobre questões importantes. O que parece ter orientado a escolha foram querelas internas, nenhuma delas de relevância para a violência contra o Estado em Cabo Delgado, a vulnerablidade do país aos desastres ambientais, o aperto financeiro no aparelho de Estado, o desemprego dos jovens, etc. Ninguém pode dizer, por exemplo, porque a recusa de acrescentar à lista da Comissão Política nomes daqueles que, mais ou menos às escondidas, tinham também preparado as suas candidaturas salvaguardava melhor os interesses do país. Toda a comoção interna teve como ponto fulcral a discussão sobre se se joga melhor o mpim-mpam-mpu, siketi-keti mbum com mais ou menos pares de joelhos, não com que qualidade de joelhos para o bem da comunidade.

Contrariamente ao que muitos pensam, não acho que a escolha final seja o mal menor. A escolha é parte do que está mal no país. Até hoje, e com todo o respeito que tenho pelas pessoas em questão, fico arrepiado só de pensar que a lista que foi votada constitui o melhor que a Frelimo tem como proposta para liderar o país. Embora respeite, desconfio muito da sanidade mental de quem quer ser presidente de Moçambique. O único que me sossegaria era ouvir o projecto político da pessoa, algo que é praticamente impossível num partido que perdeu o hábito de pensar a política a partir duma ideia.

Quer a gente goste ou não, isto é o que distingue a Frelimo de 1977 da actual. A de 1977 queria fazer a transformação socialista do país como forma de corrigir os problemas criados pelo colonialismo. A de hoje quer apenas gerir o país privatizando os recursos do Estado e protegendo-os dos adversários políticos. Há quem ache que o candidato da Frelimo ganhou na lotaria. Eu diria que ele recebeu um presente envenenado. O veneno, contudo, vai ser ingerido pelos moçambicanos.

Há um artigo de 1975 da autoria dum académico nigeriano, Peter Ekeh, que nos dá um bom quadro analítico para a descrição do problema do nosso país. Leva o título “O Colonialismo e os dois públicos em África”. Um excelente texto! Peter Ekeh diz essencialmente que o colonialismo legou às novas nações dois tipos de esfera pública. Uma é o que ele chama de “público cívico” composto por aqueles que substituíram os colonos na gestão do país. São pessoas com a mesma ética colonial. O olham para o país e para as pessoas como fontes de recursos que garantem a sua existência. O público cívico não age dentro dum quadro ético que o obrigue a zelar pelo bem comum e, o que é curioso, opera dentro dum sistema generalizado que até legitima a violação de normas para a protecção do interesse particularista. Isto é assim na posição, na oposição e mesmo na sociedade civil. O público cívico é amoral.

A outra esfera pública é a do “público primordial”. A sua ética consiste em servir os interesses de grupos particulares longe do poder (populações rurais, grupos étnicos, etc.) como forma de garantir o poder em detrimento dos que não pertencem a esses grupos. Nas condições de Moçambique, este serviço é cada vez mais retórico do que real, pois os recursos do Estado são cada vez mais escassos para satisfazer a todos. Isto abre espaço para a criminalização do Estado. Os raptos, o narcotráfico, a criminalidade aduaneira, etc. são manifestações desse problema.

Em Moçambique, com a abertura do sistema político houve uma fusão dos dois públicos. Uma das consequências disso é a dificuldade que a Frelimo tem de separar o Estado do Partido. Um Secretário-Geral da Frelimo viaja, por exemplo, com todas as honras dum alto funcionário do Estado, merece o mesmo tipo de atenção das missões diplomáticas, etc. A política transformou-se num instrumento de protecção de prerrogativas particularistas – portanto, dos partidos – mas sempre com recurso a um discurso populista de solução dos problemas do povo. É um projecto colonial em que o povo é sempre visto como uma massa uniforme de gente que precisa de ser conduzida por quem representa melhor o seus anseios.

E este é o problema deste país. O bem comum está refém da necessidade que os mais espertos entre nós têm de continuarem a viver à custa do seu acesso privilegiado aos recursos do Estado. O nosso sistema político é um espaço de amoralidade. Peter Ekeh, o académico nigeriano que me guia nesta reflexão, escreveu o seguinte: “O nosso presente pós-colonial foi moldado pelo nosso passado colonial. Foi esse passado colonial que definiu para nós as esferas da moralidade que passaram a dominar a nossa política. Os nossos problemas podem ser parcialmente compreendidos e, espera-se, resolvidos pela compreensão de que o público cívico e o público primordial são rivais, de que, de facto, o público cívico está faminto da tão necessária moralidade. É claro que "moralidade" tem um toque antiquado; mas qualquer política sem moralidade é destrutiva. E os resultados destrutivos da política africana na era pós-colonial devem algo à amoralidade do público cívico”.

Traduzido em quinhentas: o nosso país precisa de candidatos com ideias claras sobre como pretendem corrigir estes defeitos. O que é que o seu projecto político prevê como linhas de intervenção para libertar o sistema político dos interesses particularistas e amorais que condenam o país e o seu povo ao desespero? Quem não tem nada a dizer acerca disto, seja ele ou ela da posição ou da oposição, não tem nenhuma razão para se candidatar a seja o que for. Por uma questão de respeito à inteligência dos seus conterrâneos devia voltar ao lugar donde saiu.

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